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Bicho Brabo: a poética da resistência em Bacurau

Juliana Neuenschwander Magalhães, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq;

Pedro Amorim, Universidade Federal do Rio de Janeiro

O presente artigo se utiliza das imagens que povoam o cinema brasileiro, em especial aquelas do filme Bacurau, de 2019, para tratar do tema da resistência em sua relação com o Direito e com a Violência. A partir da leitura crítica da obra cinematográfica, busca-se pensar a legitimidade da reação do oprimido sobre as violências do Estado e de invasores. Para tanto, alia-se a teoria do direito à poética do espaço – o sertão pernambu­cano – e à poética da ação, da violência contra o invasor, sensível tam­bém à performance do corpo em sua urgência máxima, a da sobrevi­vência. Acompanhando a reda­ção, um ensaio fotográfico surge junto às ideias desenvolvidas, constituindo não um simplesmente seu comple­mento, mas um diálogo.

DOI: 10.17473/LAWART-2021-2-9

Bicho Brabo: Bacurau and the Poetics of Resistance

This article makes use of the images that permeates Brazilian cinema, especially those from Bacurau (2019), to address the issue of Resistance in its relationship with Law and Violence. Based on a critical reading of the cinematic oeuvre, it aims to discuss how the various types of reaction from the oppressed become legitimate in the light of invasions and State-sponsored violence. With that in mind, the text will combine law theory with the poetic elements of space and land – the Sertão of Pernambuco – and the poetics of action, of violence against the invader, yet still sensitive to the performance of the body in its utmost urgency, that of survival. Along with the writings, a photographic essay comes along the discussed themes, in a relationship not of mere complementation, but of dialogue.

Sommario:

- 1. Resistência (Re-existência) no vazio - 2. Paisagem - 3. Temporalidade: entre o passado mítico e o futurismo vintage - 4. Violência - 5. Direito de Resistência, resistência como direito - 6. A sequência final e uma conclusão - 7. Uma nota sobre as fotografias - Referências - NOTE


Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental

Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador

Uma canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral
Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior

Ao som da música Objeto não Identificado, de Caetano Veloso (1969), abre-se a tela de Bacurau, filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles (2019). À medida que a voz doce e suave de Gal Costa entoa a canção, o plano se desloca, lenta e continuamente, até que no fundo negro da tela aparecem estrelas e finalmente a imensidão azul e redonda do planeta Terra.

Não poderia ser mais reveladora essa cena, recordada unanimemente nos ensaios já escritos sobre o filme [1]. Na leitura de Duarte e Assis César [2], a canção confirma uma referência ao tropicalismo e ao passado. A tropi­cália e o tropicalismo integram um movimento cultural do final dos anos 60, momento em que o Brasil se afundava na mais longa ditadura da sua história. Na contramão da resistência à cultura de massas propugnada pelos artistas influenciados pelo marxismo, o tropicalismo propõe um contra-movimento antropofágico de apropriação e deglutição dessa cul­tura de massas, numa releitura das tradições regionais e populares, com experimentos artísticos que transitavam entre as artes plásticas, o cine­ma, o teatro, a literatura e a música. [3] Assy e Chueiri, nesse sentido, afir­mam que «in mingling the popular and the primitive with new technologies and mass culture, Tropicalism became an experience of aporia, wich, as Derrida caracterizes it, is a non-road [non-chemin]: its access is given by its inaccessibility» [4].

O início poético, na lógica tropicalista do sincretismo dos contrários, contrasta com a violência que irá ao longo do filme tomar conta da tela, até uma explosão trágica que dá lugar ao que, no presente artigo, chamamos de “poética da resistência”. A canção é de 1969, ano em que o homem pisou na lua, e fala em “espaço sideral”, “disco voador” e combi­na muito bem com a imagem da Terra vista do alto. É curioso observar que essa visão inspirou o mesmo Caetano Veloso, um ano antes, quando viu pela primeira vez «as tais fotografias» feitas pelo astronauta William Anders, a compor a canção Terra. No ano de 1968, enquanto a nave Apollo 8 dava volteios entorno à lua e revelava ao mundo as fascinantes imagens de nosso planeta visto do espaço, no Brasil era decretado o Ato Institucional n. 5 (AI 5), que suprimiu as liberdades civis e foi ponto de inflexão na direção do endurecimento do regime militar instaurado com o golpe de 1964. Pouco antes do retorno da Apollo 8 à Terra, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos. Foi na prisão que Caetano viu pela primeira vez uma imagem da Terra vista do alto: «Quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / Foi que eu vi pela primeira vez, as tais fotografias / Em que apareces inteira / porém lá não estava nua/Terra...».

Tudo isso é invocado quando, ao som de Objeto não Identificado, a câmera continua sua viagem e se aproxima da América Latina. Do espaço, a América Latina é vista com zonas muito iluminadas, as grandes cidades, e outras extensas áreas pontilhadas de luz em meio à escuridão. Pelas luzes vistas do alto, é seguro afirmar que anoitece e dali a uma ou duas horas será noite no Brasil. Mas também é possível imaginar que há uma zona escura, onde anoitece mas não há luzes, uma zona escura e esquecida no mapa. As referências são múltiplas, ao passado tropicalista e à tecnologia futurista, ao global e ao local, mas também à liberdade cria­tiva em meio à ditadura e à prisão.

O plano contínuo fecha nessa zona apagada, em algum lugar do Nordeste brasileiro. Na cena seguinte, letras brancas nos situam no interior do Estado de Pernambuco, seguindo um caminhão que leva água e vacinas a uma região esquecida do sertão brasileiro, o pequeno vilarejo chamado Bacurau. O nome Bacurau vem de um pássaro importante para a mitologia do sertão brasileiro. Câmara Cascudo o descreve como um bicho encantado, ave que mede e abre caminhos noite adentro:

O bacurau, caprimulgida, o bacurau-mede-léguas, passa a noite pelos caminhos, olhos acesos como coivaras, contando as léguas numa medição gratuita e sem fim. [...] É amuleto. Pena de asa de bacurau cura dor de dente e algumas outras, dispostas entre a manta e a sela, fazem com que o cavalo não caia nem que salte rio cheio [5].

Bacurau é bicho brabo, bicho do sertão. Na sequência em que dois sulistas chegam de motocicleta à cidade e se dirigem a um bar, onde sor­rateiramente irão instalar um bloqueador de sinal de celular que deixará a vila isolada, a forasteira pergunta à dona do bar:

- E Bacurau é o que? Passarinho?
- Passarinho não, é um pássaro. É um pouco maior.
- Entendi. Mas tá extinto já, né?
- Aqui não. Mas aqui ele só sai de noite. Ele é brabo.


1. Resistência (Re-existência) no vazio

«E na secura da terra
E no barro que ele deixa
[...]
Nos pilares sem serviço
De pontes sobre o vazio»
(Carlos Drummond de Andrade)

A trama do filme assim se desenvolve: os moradores de Bacurau começam em dado momento a perceber coisas estranhas acontecendo, como drones (então se vê a qual “objeto não-identificado” o filme se refere) que sobre­voam a terra apagada do mapa, o sinal de celular que já não chega, blo­queado pelos estranhos que visitam a vila e, finalmente, os corpos de uma família de camponeses brutalmente assassinados. A comunidade de Bacu­rau está sendo atacada. Revela-se um grupo de estrangeiros que, base­ados nas proximidades do vilarejo, parecem ter ido à região para realizar um safari: ultra equipados com armamentos de última geração e toda tecnologia, se divertem ao matar as pessoas, como animais numa caçada esportiva. Agora, o grupo precisa identificar o inimigo e criar cole­tivamente um meio de defesa.

A comunidade de Bacurau exercia uma atitude política de resistência mesmo antes dos eventos principais da narrativa. Antes da invasão estrangeira, Bacurau já era refratária ao poder do Estado que ali chega­va, exatamente porque aquele poder não representava o povo da vila, ao contrário, era o agente de injustiças e de violências que se faziam sentir na falta: falta de água, falta de remédios, falta de políticas públicas.

Onde hoje é vazio, seco, já foi água em abundância. As histórias que antecedem o evento principal do filme afirmam isso, contam do conflito pela água travado entre população e autoridades, bem como do papel de Lunga naquela resistência primeira, quando Bacurau lutava para evitar que o represamento dos principais rios da região tornasse árida toda a terra em volta. Ali, os esforços de seus moradores não foram suficientes. A água foi represada antes de chegar à cidade, os rios que cortam Bacu­rau secaram, bem como secou a represa próxima à vila.

Em Bacurau, ocorre uma Canudos ao contrário: se as ruínas da cidade de Antônio Conselheiro foram afogadas por uma represa instalada naquela área do sertão baiano, cobrindo de água toda a memória da guerra – a capela, o cemitério –, o líquido faz o caminho inverso em terras bacurenses, desaparecendo de tal forma a deixar a terra nua, exposta. Esse vazio, no entanto, é exatamente a memória recente de resistência que permeia a população de Bacurau. Lembrar da seca é lembrar da atual violência do Estado, do conflito que lhes negou a água, hoje só acessível por meio de caminhões-pipa. Tanto é assim que Lunga escolhe como for­taleza particular as ruínas da represa, como quem faz lembrar tanto da dor da perda e da derrota quanto da necessidade de luta pela água, pelo direito de viver.

A relação do povo de Bacurau com o poder institucional é represen­tada por um prefeito que não mora na vila, um político que apenas às vésperas das eleições aparece com seus asseclas e caminhões cheios de medicamentos prestes a vencer, caixões e livros velhos: apenas para oferecer, como “presente”, itens básicos à população de Bacurau em troca de votos, numa estratégia clientelista que marca as relações políticas de tipo tradicional. Mas enquanto progressivamente Bacurau era riscada do mapa, o povo respondia, num gesto de resistência, deixando as ruas e recolhendo tudo que nelas se encontrava, fechando portas e janelas e desaparecendo da vista do prefeito sempre ausente. Outra estratégia de resistência é a utilização de telefones celulares para comunicação, de modo que rapidamente todos sabem se algo de diferente se passa na vila e arredores. Há, portanto, um uso da tecnologia como estratégia de auto­defesa também por parte da população de Bacurau.

Mas a resistência está sobretudo na preservação da identidade local, marcada pelo respeito às tradições e, ao mesmo tempo, pelo respeito também à diversidade e à formas alternativas de existência. Ao mesmo tempo em que a comunidade de Bacurau mantém viva uma forte identidade coletiva baseada na rememoração de seus antepassados cangaceiros e nas trocas entre moradores, o consumo de uma semente misteriosa, um forte psicotrópico, possivelmente cultivado por Daisy e Damiano, casal que vive nu em uma casa mais distante do povoado, empodera a população. É a partir de suas ações individuais e coletivas, e apenas a partir delas, que Bacurau sobrevive mesmo quando empurrada ao esquecimento do poder hegemônico.

Quando os invasores atacam a vila, outras formas de resistência começam a emergir, passando-se da recusa silenciosa e eloquente ao enfrentamento sangrento dos inimigos da cidade, numa resposta também violenta à violência que a título gratuito é impingida à comunidade. Subverter a dominação a partir da luta é, em Bacurau, inverter a flecha do poder: direcionada pelos colonizadores em conluio com um Estado necropolítico na direção do povo, essa flecha volta, partindo dos mora­dores de Bacurau para o Estado e os dominadores estrangeiros.

Seria uma revolução se não fosse o fato de que o filme não responde se o povo irá tomar o poder em Bacurau após o extermínio dos invasores e a expulsão do prefeito, ou se simplesmente a vila retornará à velha ordem, anterior à invasão alienígena. Mas o movimento de resistência da comuni­dade de Bacurau é revolucionário na medida em que, em atitude de auto preservação em face da extrema violência de que é vítima, o povo recupe­ra o seu poder de agência e autodeterminação, abalando o sistema político antes visto como necessário e inescapável e retornando a liberdade à po­pulação. Essa inversão radical do jogo de forças, tão bem representado na parte final do filme, também ajuda a desconstruir a ligação obrigatória entre direito e poder.

A recuperação do poder sobre as próprias vidas operada pelos mora­dores de Bacurau não varre o direito hegemônico do mapa, não é uma revolução absoluta ou uma ação devastadora como a violência divina pensada por Walter Benjamin em Crítica da Violência [6]. Ao invés, é ape­nas a apresentação de um direito que sempre existiu, mas permanecia ignorado e massacrado pelas autoridades locais – o direito a viver em paz [7] e a resistir contra as injustiças. Ela coexiste com o direito porque faz parte dele, mas agora brilha mais, demarca sua existência e indica que também faz parte do sistema jurídico.

A única possibilidade de sobrevivência do povo de Bacurau é a resi­stência organizada pela própria comunidade, e essa resistência será capi­taneada por Lunga, um fora da lei queer respeitado no vilarejo, mas distanciado da comunidade bacurense. Seu retorno ao vilarejo é o estopim para a reação armada à violência invasora, e a base de operações, de onde a população retira uma grande quantidade de armas e onde será feita a tocaia para surpreender os assassinos, é o antigo museu da comunidade. O museu é o repositório empoeirado do passado de Bacurau, um passado não muito diferente do presente porque igualmente marginal. Região herdeira do cangaço [8], Bacurau traz em seu nome o ‘devir’ resistente, posto que historicamente desafiou o poder hegemônico e continua a fazê-lo das mais diversas formas. O dilema do filme, e a questão jurídica fun­damental que nos provoca nesse artigo, está posto: com que direito se pode reagir à violência com mais violência?


2. Paisagem

À medida em que a câmera se aproxima da Terra e do continente ameri­cano, as imagens localizam espacialmente Bacurau, ao mesmo tempo em que a canção tropicalista a localiza temporalmente. Bacurau é aquele lugar esquecido do planeta, com uma atmosfera vintage, perdido na América Latina, de poucas “luzes” e apagado do mapa. Temporalmente, Bacurau evoca o passado mítico do sertão, inscrevendo-se num arco temporal que vai de Os Sertões de Euclides da Cunha [9], passa por Guimarães Rosa e seu Grande Sertão Veredas [10] e chega ao Cinema Novo de Glauber Rocha e das músicas de Sérgio Ricardo, com Deus e o Diabo Na Terra do Sol, para desaguar na tropicália de Hélio Oiticica e no tropicalismo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Tom Zé. Nessa cartografia espacial e temporal (e também cultural) encontra-se a chave para a leitura do filme: o entrecruzamento do global e do local, do passado e do futuro, o sincretismo dos contrários, a antropofagia como reelaboração do passado colonial e caminho de novas interpretações do Brasil.

Bacurau é o sertão, um lugar-universal, em parte real e em parte imagi­nado, para o qual confluem todas as misérias do mundo e que, exatamente por isso, poderia ser qualquer não-lugar do mundo. Bacurau, o filme, fala das periferias, das bordas do mundo e dos seus abismos; mas também fala do centro, dos impérios e da globalização. Engana-se aquele que pensa o sertão como unidade cênica. Ele é múltiplo e compreende estados, indo do Nordeste brasileiro até o norte de Minas Gerais, ecossistemas e culturas distintas.

Portanto, é preciso antes de tudo contextualizar o sertão de que falamos quando dizemos Bacurau. Diferente do sertão mineiro de Guimarães Rosa, o trecho de sertão pernambucano em que vivem os bacurenses não são os campos de pasto e veredas perenes por onde passam boiadeiros em carga pelas Gerais. Também não é uma grande comunidade construída em volta de um líder religioso como Antônio Conselheiro, o sertão baiano da Canudos descrita por Euclides da Cunha [11]. É, na verdade, um espaço isolado, fechado em si e refratário a símbolos religiosos, aos homens de deus, ao próprio Estado e aos seus coronéis, representantes do poder instituído.

O sertão de Bacurau é terra de sol inclemente, das vegetações rasteiras e da poeira que a terra batida levanta ao ser perturbada. Bacurau não é local de passagem ou de estadia, é lugar nenhum e é também todo lugar. Bacurau tem uma escola, tem um museu, tem uma igreja, tem um bordel. Já esteve perto da água, como mostram os leitos secos de rio e a usina hidrelétrica desativada, porém sofre com a sua escassez há algum tempo. A região parece não ter sido árida sempre, pois espalham-se pela paisagem ruínas de água, estruturas que indicam uma ausência recente. Essa sutil diferença – entre o sertão historicamente seco e o sertão tran­sformado em terra desértica pela ação humana recente – estabelece a to­pografia distópica do filme, vez que o deserto antropogênico é uma pai­sagem comum em obras do gênero.

Os moradores de Bacurau logo descobrem que sua comunidade não consta mais em qualquer programa de geolocalização. A vila, que já sofria com outras ausências – água, poder público, postos de saúde, para citar algumas – torna-se ausente ela mesma ao ser literalmente apagada do mapa. A verdade é que aquela que já não era uma cidade, mas um distrito pouco lembrado, nunca esteve na geografia dos poderosos locais. Era um canto esquecido, lembrado pelo prefeito apenas no período das eleições, oportunidade em que Tony Júnior visitava-o em busca de votos.

Quando isso acontece, quando são lembrados pelo prefeito mal-intencionado, os moradores também “somem do mapa”. Essa é uma pri­meira forma de resistência que aparece no filme. A resistência do silêncio. Se os “donos do mapa” negam a Bacurau um território cartografado, isso também significa que sua existência não se deve ao reconhecimento geográfico, mas a materialidade de uma comunidade que existe apenas pelo fato de resistir. Bacurau é uma comunidade de agentes, que con­stituem uma rede de interações, comunicações e ações orientadas por crenças e valores simbólicos que conferem à vila, por meio de diferentes formas de resistência, existência.

O filme, assim como em Grande Sertão, Veredas de Guimarães Rosa, faz do Sertão o coração do mundo, porque todo o mundo cabe naquele vilarejo e aquela é uma história que poderia se passar em qualquer outra parte da aldeia global que não se espelhe na imagem da burguesia triun­fante: uma tribo indígena, um campo de refugiados, uma aldeia na Índia ou nas montanha curdas.


3. Temporalidade: entre o passado mítico e o futurismo vintage

Bacurau pode ser considerado um filme futurista, ainda que o futuro a que se refere seja um futuro próximo. É de um futurismo vintage, que se inicia com uma viagem espacial, uma música dos anos 60 falando em disco voador e amor, para nos conduzir às profundezas do sertão, uma região de terras áridas e vidas secas. Esse futurismo é distópico, marcado tanto pelas reminiscências do passado quanto pelo domínio da velocidade e da tecnologia. De um lado, há a invocação do passado mítico do sertão, que é um passado do cangaço, das lutas entre jagunços, de Antônio Conselheiro e da esperança de redenção messiânica pela ação do povo, de contrastes entre a opulência da elite agrária e a miséria do povo. Esse passado mítico é representado no filme pelo Museu de Bacurau. O museu coleciona não apenas a arte popular da região, mas também (e sobretudo) as memórias das lutas de resistência que operam, no filme, como um mito fundador de Bacurau, a ser reativado sempre que a comunidade se encon­tra em perigo. Para Assy e Chueiri «Bacurau’s museum reveals the presentification of memories of resistance, a meaningful space of political common empowering narratives» [12]. Nas paredes do museu de Bacurau estão os símbolos da resistência e dali que os moradores retiram as armas quando delas precisam fazer uso.

De outra parte, o futuro já presente: drones, telefones celulares, aparelhos que bloqueiam as telecomunicações, armas automáticas, moto­cicletas em alta velocidade que deixam rastro de poeira na estrada de terra. Para Ivana Bentes, essa é a realidade do «rural contemporâneo» no Brasil, um Brasil pontilhado de pequenas cidades do interior que estão distantes dos grandes centros e ao mesmo tempo são conectadas com o urbano: «atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor», o que faz de Bacurau «uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Maps» [13].

Há um atrito de resistência: ao mesmo tempo em que Bacurau sobre­vive graças à memória do passado e à experiência de uma temporalidade mítica, é atravessada pela aceleração que marca o presente global, na ve­locidade da tecnologia e do feroz capitalismo neoliberal.

Assim como propugnado pelo Manifesto del Futurismo de Marinetti (1909), que ao passo que exaltava a «bellezza della velocità», glorificava a guerra «sola igiene del mondo», o militarismo, o patriotismo, «il gesto distruttore dei libertarî, le belle idee per cui si muore e il disprezzo della donna» [14], em Bacurau a velocidade da técnica invade a cidade e a própria narrativa do filme, na forma da radicalização da violência. «Bacurau’s narrative indicates a temporality that accelerates and radicalizes the immanent dimension of violence» [15].

Bacurau é a síntese do passado mítico e da aceleração futurista. Bacurau é atemporal. Nessa (a)temporalidade há já um signo de resi­stência: de um passado que resiste à pressão futurista e que é, ao mesmo tempo, repositório das armas da resistência. O passado mítico resiste em face de uma sociedade que vive a aceleração máxima ao ponto em que não há passado nem futuro, mas apenas o presente. O presente-universal da globalização, apresentada como sinônimo de triunfo do capitalismo, confirmando a profecia que Marx e Engels fizeram em 1848, em um outro famoso manifesto, ao afirmarem que a burguesia faria um mundo à sua imagem e semelhança [16]. A globalização é vista como uma violenta suces­são de acidentes, no qual a invenção e adoção de uma nova tecnologia é também a invenção e adoção de um novo acidente, como fala Paul Virilio [17]. O maior de todos acidentes, diz Virilio, é o «acidente do tempo»: a hiperconcentração do tempo real que reduz todas as trajetórias a nada, as trajetórias temporais se tornam um presente permanente. O acidente dos acidentes, a grande catástrofe da globalização, seria esse onipresença do presente, que implica na supressão do passado como horizonte da ex­periência e no futuro como horizonte da expectativa, tomando aqui as ex­pressões de Reinhardt Koselleck.

O futurismo é vintage em Bacurau, é coisa já passada, porque na socie­dade da globalização tudo que importa é o presente. Assy e Chueiri falam na «accelaration of violence in the temporality of the now» [18]. A explosão de violência em Bacurau é uma manifestação do presentismo que caracte­riza a experiência da temporalidade típica da globalização. No presen­tismo, torna-se necessário apagar o passado e esquecer o futuro:

Esqueçamos o futuro! O futuro é já presente, com as rodovias virtuais, onde a velocidade chegou a seu ponto máximo, até desaparecer e atingir os extremos da simultaneidade. Nela, só há presente. O presente-acidente do tempo, que reduz tudo a nada. O presente permanente do fascismo [19].

No tempo da aceleração presentista abre-se o espaço da necropolítica, em substituição à “tradicional” biopolítica. As populações já não são mais geridas pelo controle sobre a vida, mas sim pelo controle sobre a morte. A biopolítica é o fenômeno da «assunção da vida pelo poder», «uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico» [20]. Esse direito con­siste no poder de “fazer” viver e de “deixar” morrer. A biopolítica é essa nova “tecnologia do poder” que se soma aos mecanismos anátomo-polí­ticos de controle sobre os corpos, que devem tornar-se úteis e dóceis ao mesmo tempo [21] e constituem dois aspectos do biopoder.

Todavia, para Achille Mbembe a noção de biopoder «é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte». Nesse passo, propõe a noção de necropolítica e necropoder para explicar como, no mundo contemporâneo marcado pela globalização e pelo neoliberalismo mais cruel, «armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas po­pulações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’» [22].

Em Bacurau enquanto o prefeito atua na velha lógica biopolítica de “deixar morrer”, a população de Bacurau é alvo de uma estratégia necropolítica por estrangeiros invasores, norte-americanos bem armados liderados pelo terrível Michael que chegam à região com o objetivo de caçar seus moradores. Não há outra razão para a visita desses homens e mulheres que não a prática da caça esportiva contra humanos, e seus jogos apresentam uma racionalidade própria, com regras, pontuação, código de conduta interno. De certa forma, todos os estrangeiros estão ali para colonizar a partir da morte. É a ação pelo desejo racionalizado de extermínio e nada mais. Mesmo a terra de Bacurau não importa, pois é pobre e não oferece ao invasor qualquer vantagem ou riqueza. O que se quer colonizar é a própria existência de seus habitantes, substituindo-a pelo vazio em uma imposição radical de vontade do colonizador sobre a vida do colonizado. Essa é uma representação dura de necropolítica a partir de seus elementos constitutivos mais básicos: o poder hegemônico, a margem, a violência que tem como único propósito o desaparecimento físico do diferente.

A operacionalização desses elementos necropolíticos no campo da poética cinematográfica leva a uma clivagem entre vilões colonizadores, detentores da tecnologia avançada, e uma população inicialmente em de­svantagem tecnológica e estratégica, situando-nos em um cenário de vio­lência unidirecional, dos estrangeiros assassinos aos sertanejos vítimas – uma política de extermínio sem sobreviventes.

Para arrematar essa ideia, Mendonça Filho e Dornelles fazem um ace­no aos filmes clássicos de invasão alienígena ao colocarem em cena o drone dos caçadores com seu inusitado formato de disco voador. Nesses filmes, seres mais evoluídos, detentores de tecnologias avançadas e armas incríveis, vêm à terra com o intuito de colonizar o planeta, destruindo ou escravizando sua população. Invariavelmente, os invasores são recha­çados pela criatividade e determinação dos heróis humanos, normalmente norte-americanos, que de seu país natal conseguem salvar o restante da humanidade. Perene em ironias cinematográficas, Bacurau nos entrega uma revisão desse motivo popular: aqui, os alienígenas são os norte-ameri­ca­nos.

Nesse caso, vemos a performatividade da resistência de Lunga e do povo bacurense como um paralelo da resistência heroica nos filmes de invasão alienígena, uma resistência que ocorre a partir do apro­vei­tamento estratégico do terreno desconhecido ao invasor, do uso certeiro das armas estrategicamente posicionadas, da exploração de fraquezas em um inimigo de outro modo superior. Contra a violência escópica do drone/disco voador que tudo observa, a vila monta tocaia dentro das casas e nas sombras do museu, valendo-se ainda da soberba inimiga, que preferiu ignorar a humanidade de suas “presas” a enfrentá-las em pé de igualdade, como normalmente fazem os aliens – e por isso mesmo falham.


4. Violência

A violência tem um nome? Bacurau nos traz essa questão, e para re­spondê-la, recorremos a Walter Benjamin e seu Crítica da Violência [23]. Se os moradores de Bacurau reagem à injustiça que sentem na pele de forma violenta, a relação que têm com a lei hegemônica é de tensão constante.

É um jogo brutal no qual o chefe do poder político local por vezes se utiliza de mecanismos de biopoder – o controle da água, do conhecimento formal, das próprias vias de acesso à cidade –, por vezes institui uma necropolítica – entrega de remédios vencidos, a aliança com um grupo de extermínio. Os habitantes de Bacurau, por sua vez, não se comovem com as ações do prefeito, hostilizando-o abertamente.

Essa violência é exercida tradicionalmente como uma forma de con­trole biopolítico sobre as populações, que nos trópicos surge no cruzamento entre velhas práticas coloniais, a corrupção política e o coro­nelismo enraizado nas relações de patronagem e no Estado. Mas quando a política mais tradicional se alia ao capitalismo feroz de tipo neoliberal, representado pela presença em Bacurau dos caçadores estrangeiros, pas­sa-se da biopolítica à necropolítica. Os detentores do poder econômico global, então, colonizam as instituições de Estado simplesmente pagando por sua conivência. Da biopolítica o neoliberalismo fez um jogo necro­político: o extermínio praticado como esporte, o gozo pela eliminação do Outro, a violência brutal que se torna banal, são imagens não mais metafóricas. É um jogo que já começou.

Para o prefeito, esse movimento em direção aos caçadores europeus parece natural e vantajoso, uma vez que a comunidade de Bacurau pouco lhe serve viva. É contestadora, resistente – uma pedra no sapato de sua eleição. Eliminá-los é manter a sua hegemonia política, a sua lei. Assim, temos inicialmente que a lei do prefeito é, em essência, dependente da atualização de uma força originária sobre determinada comunidade, em uma situação em que parte dessa comunidade – os coronéis e poderosos – detém os meios para criar e manter a relação de domínio sobre a outra parte. A comunidade é composta por grupos que criam o direito ou que dele se beneficiam e grupos que se sujeitam ao direito por imposição, não sem desobedecê-la quando possível. E aqui é importante pensar se essa desobediência não seria, por definição, direito também. No caso, seriam os Outros, aqueles que resistem à lei injusta, amparados por um direito à resistência: não apenas um imperativo moral de reação às injustiças, mas uma construção jurídica de expectativas a partir da qual podemos pensar em um direito à própria agência e organização coletiva de resistência. Nesse jogo, os bacurenses são os Outros, os que não venceram e não podem criar ou operar o direito hegemônico, que deveriam aquiescer por força de uma violência às vezes fundacional, às vezes garantidora desse contexto de obediência.

No campo da legitimação sociocultural, o direito se estrutura como necessário a partir de narrativas de pertencimento calcadas em uma visão particular de realidade que se pretende universal. O controle dessas narrativas é o controle do poder da lei, que no sertão profundo e místico se exemplifica pela relação entre Estado e Igreja. A violência do safari estrangeiro em Bacurau é, portanto, legitimada pelo próprio Estado, enquanto a reação à injustiça o contraria.

Aqui, é necessário pensar que violência fundadora e violência garanti­dora não se excluem mutuamente. A refundação das relações jurídicas sertanejas a partir da violência, representada dramaticamente pelo evento central de Bacurau, indica que a violência fundadora do Estado continuará a existir juntamente às forças que o mantém: na ausência de leis e instituições de justiça, a Polícia exerce o poder de criar obrigações e reforçá-las violentamente a quem quer que alcance. Esse papel, a um só tempo de fundadora e mantenedora do direito, que cabe às forças policiais, encaixa-se no conceito de militarismo explorado por Benjamin em Crítica da Violência: uma a compulsão ao uso universal da violência como meio para fins do Estado.

No caso de Bacurau, vemos que a população já enfrentara essas forças de Estado antes. Um carro da Polícia Militar de Pernambuco crivado de balas descansa na entrada da cidade. Dessa vez, no entanto, o Estado aproveita a oportunidade de conferir aos caçadores o direito de aniquilação da população marginal que ousou contestar o poder do prefeito, em uma forma de violência fundadora muito próxima àquela que Benjamin pensa quando fala da instituição da pena de morte como criação de novo direito. Mesmo sem previsão em códigos, o direito-poder se reafirmaria sobre o corpo destruído dessas dissidências, não fosse a reação coletiva à violência fundadora patrocinada pelo poder hegemônico em conluio com os caçadores.

A violência do Estado no sertão é uma violência mítica. Ela parte de um poder soberano e estabelece as formas de agir a partir das quais se estrutura a comunidade sertaneja. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de Glauber Rocha referência para Bacurau, essa estruturação apa­rece com mais clareza: o direito do coronel é também o direito da Igreja e o Estado se apoia em sua relação com os representantes oficiais de Deus na terra para perseguir opositores políticos como o beato Sebastião. Bacurau herda essa lei do coronel e a atualiza para um sistema que tem como representante o Prefeito vigarista. Podemos assumir, no entanto, que o direito continua se apoiando em fundamentos míticos. Uma pista é a cena em que a televisão de uma das casas está ligada e uma série de execuções públicas ocorre ao vivo, em um cenário sacrificial cuidadosa­mente organizado para reforçar uma idolatria à verdade do Estado. Para Benjamin, essa violência é inerentemente idólatra ao tentar projetar as verdades divinas nas leis escritas pela humanidade. A tentativa será falha, pois apenas o divino conhece a verdade, e essa não é a função humana.

Desse fundamento mítico, no entanto, surge a própria legitimação do poder violento, e a violência do direito posto atualizaria a falha inter­pretação humana das vontades divinas. Em contraposição a essa vio­lência mítica, a violência divina seria aquela que irrompe destrutiva e apaga os traços de um sistema miticamente construído. Ela não traz a verdade em si, apenas destrói as mentiras de um direito mítico que se pretende divino, lançando a ira divina que desintegrará aquele poder. Em termos sociais, a violência divina irrompe para desestabilizar radicalmen­te um poder hegemônico, desestruturando a própria soberania imposta [24].

Uma relação interessante é aquela entre a negação das autoridades da região e o ritual de ingestão da semente alucinógena pelos moradores de Bacurau. A semente remete, simbolicamente, à desconstrução do funda­mento mítico do direito e à experiência divina do psicotrópico, que pode oferecer um contato imediato com o divino, distanciando Bacurau das verdades hegemônicas criadas pelos “representantes de Deus na terra” e aproximando-os de uma “igreja sem padres”, estabelecendo uma expe­riência de espiritualidade em seus próprios termos, sem a idolatria presen­te na igreja e criticada por Benjamin em Crítica da Violência. O forte psicotrópico e sua ingestão são, portanto, a alegoria da experiência divina benjaminiana.

É também o elemento precipitador de uma violência messiânica como deslocadora da força política soberana – o uso do psicotrópico – uma experiência alucinógena desgarrada da teologia tradicional, da idolatria e da escatologia que estrutura ideologicamente a soberania desse Estado indiferente à vida de Bacurau. O psicotrópico é a identidade espiritual da comunidade, junto à identidade mnemônica – o museu – e à simbologia do bacurau-ave, o bicho brabo que só sai à noite. É uma forma de lembrar que o Estado representado pelo prefeito pode ser confrontado quando, a partir de uma ação coletiva e organizada, é atualizada a memória mítica de Bacurau, como de fato acontece no confronto entre a vila liderada por Lunga e os estrangeiros apoiados pela prefeitura.

Uma vez desestabilizada pela violência, a soberania do Estado perde sua legitimação política e temporal, pois se mostra frágil e finita. De sua decomposição, uma parte do poder retorna ao povo, aquele que sempre foi a fonte de sua legitimidade formal e é também seu receptor. Uma relação episódica entre soberania e resistência como a que observamos no filme poderia ser pensada a partir de um processo que se inicia com o injusto praticado a partir do Estado soberano e se conclui com um enfraquecimento das justificativas míticas para a manutenção dessa so­berania, enfraquecimento este causado pela ação contrária à força injusta, uma reação que é resistência à violência. Esse enfraquecimento, por sua vez, dá força a formas de direito que não aquele hegemônico, atrelado à soberania ora abalada. Esses direitos antes soterrados por um sistema jurídico excludente podem se fazer presentes enquanto novas possibilidades, uma contestação que se instala como expectativa legítima no seio de um direito que se desconstrói a partir da resistência.

Em outras palavras, a ação de resistência que abala os fundamentos míticos da autoridade abre os caminhos – como faz a ave bacurau – para a inserção no direito do que antes era considerado não-direito, uma vez que o Direito hegemônico se encontra em crise de legitimidade e, portanto, não é mais considerado como verdade jurídica única.


5. Direito de Resistência, resistência como direito

A resistência é parte da identidade coletiva da comunidade de Bacurau, está enraizada no seu passado mítico e exibida no museu das cabeças cor­tadas de seus antepassados. Como anotou Judith Butler em relação aos palestinos, podemos dizer que Bacurau resiste só pelo fato de existir [25].

O ato de resistência pode ser individual, como foi o gesto de Rosa Parks ao recusar-se a ceder seu lugar a um branco no ônibus, nos EUA ainda segregacionista e racista dos anos 50. Mas a resistência é, observa Costa Douzinas, sobretudo um ato coletivo e, portanto, de reação à imediatez da injustiça. Injustiça não aqui entendida como o contrario da justiça, mas sim aquilo que se sente na pele, como urgência. Enquanto a justiça é abstrata e intangível, a injustiça dói na pele, é imediatamente recognoscível. É uma disrupção violenta que está ocorrendo e que ocorre com alguém. E a injustiça de que Bacurau fala é de tal ordem que sobre ela não se pode calar: não há outra forma de resistência que não a da resposta violenta diante da extrema violência, numa invocação e atualização do cangaço como única alternativa viável ao extermínio.

É a partir da reação à incontrolável presença da injustiça [26], na forma da violência invasora, que as ações de resistência irrompem. A defesa da vila não apenas eliminará o perigo representado pelo alemão Michael e os caçadores norte-americanos, mas atingirá o próprio prefeito, que será eliminado da vida política da região ao ser expulso de Bacurau amarrado em um burrico. Há aqui, no que aparentemente seria uma espécie de calibragem dos meios e da violência praticada, um menosprezo ao poder local que se corrompeu ao se colocar a serviço dos invasores. Os morado­res de Bacurau desprezam a ridícula figura do prefeito. Ele não é elimi­nado como os outros. Ele é colocado sobre um burrico e abandonado no sertão. Não está dito o seu fim, mas o gesto diz tudo sobre a irrelevância, para o povo de Bacurau, daquele que deveria agir como seu represen­tante. O poder sobre o vilarejo, ao menos por um breve momento ao fim da película, será devolvido aos seus habitantes, como previa corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol: mais fortes são os poderes do povo.

Ao recuperar a experiência do cangaço e empoderar-se com suas armas e história, a população de Bacurau lembra os seus mortos, os bandidos perseguidos pelo poder ao longo da história sertaneja. A ação de rememoração torna-se, assim, ação de redenção: contém a força mes­siânica que Benjamin associava à recuperação das vozes esquecidas, dos cacos da história [27]. Porque a justiça não deve servir apenas aos vivos, mas também aos mortos, e só assim efetivará a promessa messiânica de felicidade. Esse respeito às experiências passadas é claro no filme de Dornelles e Mendonça Filho, uma vez que a população de Bacurau é orgulhosa do seu museu e das origens do vilarejo, reconhece seus mortos e os recupera em cada ação individual de desobediência armada, em cada atitude coletiva de resistência. O museu de Bacurau recolhe os objetos e traços da fundação da vila: sua função é a de manter aceso o mito fundador, de manter viva a chama da violência inaugural. Por isso, as manchas de sangue não serão apagadas de suas paredes.

A ideia de pensar os atos de resistência em Bacurau como legítimos tanto moral quanto juridicamente encontra raízes mesmo na tradição contratualista de Hobbes. Em Leviatã, nos lembra Elsa Dorlin [28], a autodefesa, e por extensão a resistência, é central à manutenção da liberdade. Isso porque Hobbes assume a criação do Direito como um evento derivado da absoluta igualdade entre seres humanos que permeia o estado de natureza. Essa igualdade provém da igualdade de expec­tativas sobre os fins que buscamos, e a quebra dessa igualdade é injusta porque frustra o futuro do indivíduo. A violência contra o outro é, antes de tudo, uma frustração de seus desejos e, em sua forma mais radical, um interrompimento da vida. Hobbes assumirá que a resistência a essas injustiças é inerente à condição humana e que não há possibilidade de se renunciar ao ato de resistir sem que se renuncie à própria humanidade no processo. Os limites a essa resistência decorrem do contrato social estabe­lecido e das leis que dele surjam, mas Hobbes entende que esse estado de segurança legal não terá a capacidade de anular a autodefesa, a violência e a resistência. A partir daí é que se assume, em O Leviatã, que a possibili­dade de resistir pode não estar dentro do direito, mas tampouco estará fo­ra da vida política [29].

Mais do que isso, no entanto, a resistência como ação contra as vio­lências injustas é, para Hobbes, imanente à própria corporeidade do indivíduo, e a autodefesa iria além da legalidade porque simplesmente ocorreria à revelia do direito instituído, pois sua materialidade, da ordem da reação ao injusto que ocorre no aqui e no agora [30], não seria mediada pela lei positiva. No fim, a resistência é «a expressão de uma efetividade material que constantemente põe em xeque, ou pelo menos em crise, o artifício do Direito» [31].

A violência, no entanto, não deve ser entendida como elemento abso­luto da resistência. Essa, por sua vez, deverá ser considerada não apenas uma possibilidade política decorrente do fator humano necessário – a defesa do próprio corpo, como pensa Hobbes; ou uma ação legítima a partir da defesa da propriedade privada, como pensa Locke – mas também como um direito.

Jacques Derrida, ao interpretar a Crítica da Violência de Benjamin em seu Prenome de Benjamin [32], chega à conclusão de que não existe direito sem uma atualização de poder a partir da violência. Isso significa que o Direito deriva da condição de poder do estado e apenas se legitima, em última análise, pela força. Assim, o direito injusto do prefeito de Bacurau se legitima pelo uso de mecanismos de violência contra a população bacurense. É a entrega de livros em mau estado, a doação de remédios vencidos e antidepressivos fortes – daqueles que retiram do paciente sua energia e vontade, tornando-o apático – ou a sua parceria com os assassinos estrangeiros que atualizam à força o direito em Bacurau.

Para Derrida, quando falamos em Lei, não conseguimos fugir de sua relação fundamental com a violência performativa [33]. É também pela violência que um governo se estabelece como soberano, o que perpetua um ciclo de legitimação à força: a violência se legitima a partir da aplicação pelo Estado e é igualmente utilizada para legitimar o próprio Estado, que detém o monopólio de seu uso, pois soberano é aquele que faz aplicar suas leis. Por isso mesmo Derrida irá condicionar a ideia de revolução à de violência.

Não há nada mais distante das ideias benjaminianas encontradas em Crítica da Violência. Em primeiro lugar, porque Derrida opera uma junção inconsequente entre violência e direito, relação esta que falta ao texto de Benjamin, uma vez que implicaria em entender a violência como meio sempre atrelado a um fim justo ou injusto, sendo esse o fim do Direito. Mesmo que Derrida desconsidere a relação necessária entre justiça e direito, os fins do Direito ainda seriam justos ou injustos – pois só podem ser um ou outro –, e a violência ainda participaria dessa pro­dução de justiça ou injustiça como meio incontornável.

Em segundo lugar, por pensar a revolução como inerentemente vio­lenta, o que é dizer que o revolucionário sempre agirá contra o direito, mas dentro de seu alcance. Benjamin pensa a violência divina exatamen­te como a remoção perfeita do direito posto. Não é, portanto, violência, mas o ápice da não violência [34], posto que leva à inexistência a lei anterior e estabelece um momento de pré-direito – e, por consequência, de pré-violência fundadora e mantenedora.

O que nos interessa, a contrário, é desarticular a conexão necessária entre direito e violência, o que é necessário para se entender resistência como direito. Faremos isso a partir de dois enunciados: 1) por serem cate­gorias distintas (violência – meio; direito – fim), violência e direito não são essencialmente ligadas. Da mesma forma, não há uma ligação inequí­voca entre violência legítima e fins justos ou injustos; 2) Direito não é aquilo que o estado impõe como tal a partir da força, mas uma relação complexa de auto implicação entre o que se considera como direito hegemônico – o que se legitima por força da lei e da polícia – e os direitos dissidentes, o não-direito que é, em verdade, o direito à margem, aquele que não é considerado pelos detentores do poder, mas existem mesmo assim: o não-direito que é, também, direito.

É válido pensar em uma categoria que operacionalize essas duas afirmações a partir do exemplo de Bacurau, e tal ideia não deve ser outra que não a de ‘resistência’. Resistir é reagir à injustiça. Esta, por sua vez, é aquilo que se faz presente e que se sente na pele, uma violação urgente. Em Bacurau, observamos uma série de injustiças cometidas contra o vilarejo, da escassez de água, que se torna propriedade privada de uma empresa, ao descaso do poder político local, mas temos como trama principal a perpetuação da injustiça máxima: a caçada aos habitantes do povoado pelo grupo de Michael.

A resistência ao direito injusto e às injustiças armadas do filme de Dornelles e Mendonça Filho nos faz pensar no próprio espaço que o resistir ocuparia no campo do direito. Seria o ato de resistência amparado por um direito à resistência? Entendemos que a resistência é, antes de tudo, uma confrontação entre alguém que detém direitos e alguém que os fere. Colocar o sujeito resistente como sujeito de direitos definitivamente insere a resistência no campo do direito.

Pensando a partir de um paradoxo insolúvel, no qual tanto o direito quanto o não direito participam das operações do sistema jurídico, é necessário assumir que o não-direito é, por definição, direito. É isso que chamamos, seguindo Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi [35], de unidade da diferença. O direito de resistência, ignorado pelo direito hegemônico, é indicado como não-direito. No entanto, precisamente por isso, é também direito, ainda que um direito marginal.

A contingência do direito é a sua dimensão de precariedade, o testa­mento às potencialidades do que é externo e pode se tornar interno ao sistema jurídico, à possibilidade de mudança. A mudança, no entanto, só pode ocorrer a partir de uma irritação do sistema, uma ação que tensione o direito-como-é em direção ao direito-como-pode-ser. Não como uma relação entre ser e dever-ser, mas como uma abertura às possibilidades múltiplas, também contingentes. Quando falamos em resistência, falamos em uma ação que busca enfrentar uma injustiça, e que o faz a partir de um grupo ou indivíduo alvo de violência, uma ação transgressora em relação ao direito hegemônico, aquele que dá origem à ação injusta. É, para Costa Douzinas [36], uma garantia à democracia, pois junto ao dever de obedecer, caminha o direito de discordar:

O direito de resistência não mais é visto como uma ameaça à democracia e ao próprio direito, mas como um motor que mantém a chama democrática acesa e faz o direito se transformar. E isso não apenas porque as diversas formas de resistência contra a injustiça são capazes de engendrar mudanças no direito, com o surgimento de novos direitos, muitas vezes chamados de “humanos”, que há um só tempo constituíram conquistas e formas de acomodação dessas lutas [37].

Isso porque a resistência é a face transgressora do direito. Está inserido nele porque se legitima juridicamente a partir de seu papel fundamental na democracia, mas está igualmente voltada para o seu exterior, porque é este o seu locus, o espaço de não-direito onde as violações legitimadas pelo direito tendem a ocorrer. É assim em Bacurau, que resiste à violência invasora e ao apoio necropolítico de seu prefeito, fazendo valer seu direito à vida contra uma série de ações injustas perpetradas pelo Estado e por seus aliados.

A violência, no entanto, não faz necessariamente parte dessa relação entre direito e resistência. Isso porque ela é um meio-em-si, como entendia Benjamin, e não deve ser reduzida ao seu papel instrumental na promoção das Leis justas ou injustas. Igualmente, não deve ser consi­derada em apenas por seu papel na resistência, que em Bacurau é violenta não por uma unidade entre meio e fim, mas porque a ação provocadora foi absolutamente violenta ela mesma. Podemos dizer, portanto, que a ação de Bacurau é antes “resistência como direito” para depois ser violência, que não se afigura como legítima ou ilegítima uma vez que necessária. A violência aqui se legitima como parte da resistência porque é utilizada como meio de sobrevivência.

Um direito que se institua não como a forma que oculta a violência que lhe é imanente, mas que incorpore a resistência, ainda que violenta, não como seu contrário, mas como sua essência. Como nomear a violência que resiste à lei que se faz opressão? Essa é a grande pergunta que o filme nos traz ao apresentar poeticamente a tensão da unidade e da diferença [38] entre direito e violência.

A universalidade desse problema, posto num ponto não-iluminado do planeta visto desde o alto, faz do sertão o coração do mundo em que vive­mos. Nesse sentido, embora partamos de Benjamin e mesmo da leitura que dele faz Derrida, avançamos uma outra hipótese. A força da lei, ou melhor, a força do direito (que não se resume e nem se confunde com a lei) não é, necessariamente, sinônimo de violência. O que não significa que não haja algo de violento no direito. A força que se manifesta na tensão entre direito e violência, que é a tensão da unidade de uma diferença, é tanto a força do direito-lei e opressão, quanto a força do direito-resi­stência. O direito tem, em si, algo de resistência, e não necessariamente de violência. E isso mesmo quando a resistência é, eventualmente, também violência. Bacurau, esse bicho-brabo, mostra quão tênue pode ser a linha de distingue a violência da resistência, mas também como a diferença entre uma e outra se torna evidente ante a experiência sensível da injustiça.


6. A sequência final e uma conclusão

De fato, resistir ao poder não é uma de várias opções, mas a única forma de se manter vivo em um contexto jurídico-político em que tais ações injustas ocorrem sistematicamente, um contexto injusto no sentido de Costa Douzinas. A vontade de reação à injustiça, portanto, povoa nossa imaginação e verte pelas criações artísticas contemporâneas, já que a ação de resistir é sobretudo um evento político coletivo [39] e a imaginação de resistência é igualmente compartilhada por uma coletividade. Bacurau, ao expressar essa imaginação coletiva da resistência, não fala nem do passado nem do futuro, mas do tempo de agora.

É possível opor a violência dos caçadores estrangeiros à violência redentora que Benjamin assume como revolucionária e que consiste em recuperar, no presente, as tentativas de gerações anteriores, perdidas, vencidas. Essa ação coletiva traz ao presente a força redentora que anima a violência de reação contra a violência do direito dos vencedores, dese­stabilizando o poder instituído e, no caso dos habitantes de Bacurau, opondo-se ao próprio extermínio físico. Nesse ponto, a sequência final de Bacurau, em toda sua simbologia, oferece uma alegoria vívida da reden­ção benjaminiana.

Toda a tensão do filme deságua em um conflito intenso entre a vila e os invasores. O grupo de invasores se divide em dois. Willy e Kate vão na frente, encontrando a casa de Damiano e sua companheira. Ali, o pri­meiro confronto ocorre, resultando na morte violenta de Willy e nos feri­mentos mortais de Kate. O restante segue para Bacurau, caminhando pelas estradas desertas até encontrar as primeiras casas da vila. Agora assumindo o pior sobre Willy e Kate, alguns dos invasores estabelecem como prioridade o resgate dos dois desaparecidos. Para eles, a missão inicialmente simples – matar a população indefesa, pronta para o abate – tornou-se mais complexa. O cenário encontrado, aquele de casas e ruas vazias, um varal com roupas ensanguentadas dos bacurenses mortos até então, começa a preocupá-los. A cena de total abandono da cidade não estava nos planos traçados com tanto cuidado.

Enquanto isso, Michael observa de longe, com sua mira telescópica, a chegada dos caixões que encerrariam os corpos bacurenses ao fim do mas­sacre. O caminhão traz as caixas de madeira e duas pessoas começam a despejá-las na rua principal. É possível que toda a cena seja referência a um motivo recorrente nos faroestes spaghetti, muitos dos quais costuma­vam usar os caixões como símbolos da mortandade exagerada em vias de acontecer, especialmente nos duelos de pistoleiros – clímax fílmicos ocor­rendo, no mais das vezes, sobre as ruas empoeiradas e as construções de madeira da rua principal das pequenas cidades do oeste americano [40].

Posicionado no alto de uma colina, Michael atira nos dois carregadores enquanto depositavam os caixões no centro de Bacurau. Terry, Chris, Julia, Josh e Jake também buscam alvos em que atirar. Julia, frustrada, concentra seus tiros na escola, rajadas seguidas de rajadas. Terry entra no museu de Bacurau. Após os tiros de Julia, Pacote, Teresa e os outros habitantes tocaiados na escola abrem fogo, matando-a junto com Josh. Os tiros chamam atenção de Terry, que se distrai dentro do museu, oferendo a oportunidade que Lunga esperava. Agindo silenciosamente, do subterrâneo do museu, Lunga atira em Terry, finalmente matando-o em seguida com golpes de facão. Agora o desespero se instalou entre os ame­ricanos restantes, que saem desbaratados em direção à rua principal. Ali, Michael mira em Chris, atirando e matando um de seus clientes. Desesperado, Jake busca abrigo no museu, apenas para ser morto por Lunga. Michael é o único sobrevivente do grupo invasor, buscando o suicídio ao se perceber sozinho e cercado de inimigos. Ele é interrompido pela aparição de dona Carmelita e rendido por um homem armado, tor­nando-se o único prisioneiro de Bacurau.

É importante pensar nas imagens apresentadas pela última sequência violenta do longa-metragem, pois é delas que podemos extrair uma refle­xão sobre os elementos de resistência fundamentais ao filme. A violência em si, apesar de sua dimensão catártica e espetacular, é apenas a lingua­gem a partir da qual foram estabelecidas as conexões entre memória e ação coletiva. Mais importantes são os lugares de ação: a escola, de ontem saem os tiros que revidam o ataque de Julia; e o museu, onde Lunga espe­rava pacientemente pelos invasores. Memória, história e narrativa são os verdadeiros trunfos de Bacurau – tanto do filme quanto da cidade. Muitas das armas são recuperadas do museu, onde a história do cangaço de Bacurau é preservada. Ali, entre armas antigas e tocaias, essa história se atualiza, oferece o instrumental para a resistência à violência imediata perpetrada pelos invasores.

A memória recente também é parte da narrativa de resistência de Bacurau, já que presentes estavam as roupas ensanguentadas dos assassi­nados pelos invasores, expostas sob o sol para que todos pudessem ver. Aqueles mortos não foram esquecidos, e sua história será a história da vila. O carro de som do DJ Urso entoa os nomes de todos os bacurenses mortos enquanto as manchas de sangue mantidas na parede do museu, agora parte de sua memória, confirmam o papel do rememorar para os habitantes: o sangue é do invasor, mas representa a morte e o matar, a violência e a resistência, representa todos os mortos.

No fim, o único sobrevivente é confrontado com as cabeças decepadas dos outros caçadores. Michael, ao reconhecê-las, exclama: «so much violence!», verbalizando o pensamento que permeou toda a ação invaso­ra, aquele de que selvagens serão sempre os outros. Ironicamente, Bacurau é de fato um lugar cujo nome remonta ao da ave selvagem, ave carregada de simbolismo para a população local, e por isso homenageada. E como última ação de resistência, a cidade-ave encaminha Michael para uma cela escavada em um buraco no chão, nas entranhas da terra. Assim, engole o caçador como faria o bicho com um inseto [41], em um movimento antropofágico digno da tradição moderna e, posteriormente, tropicalista [42]. Ao encaminhar o estrangeiro às suas entranhas, a vila de Bacurau ressignifica a violência trazida à sua porta, devolvendo-a sob o signo da memória, alimentando-se dela, tornando-a energia e força motriz de ações futuras de resistência, aquelas que, sabem todos os bacurenses, serão novamente necessárias um dia.


7. Uma nota sobre as fotografias

O ensaio que acompanha o presente artigo não foi feito na vila fictícia de Dornelles e Mendonça Filho. Ao invés disso, foi produzido em muitos lugares e em diferentes ocasiões, mas calhou de dialogar com as imagens de resistência, violência, abandono e esperança evocadas ao longo do texto. Assim, tomo a liberdade de produzir uma Bacurau imaginada sobre a imaginação de outra Bacurau, a do Cinema. Faço isso porque, como já dito, uma certa desidentificação espacial da vila operada pelos invasores implica, em termos de narrativa fílmica, na transcendência. Por não mais se prender à geografia que lhe conferia um território definido e reproduzido cartograficamente, Bacurau não deve mais sua existência à materialidade da terra pernambucana, ao mapa ou à areia, pois se torna ideia. Bacurau é uma comunidade de agentes, seja em Pernambuco ou em outro lugar: porque são as ações de seus habitantes e seus valores simbólicos que conferem status de tangibilidade à vila. Bacurau será texto, fotografia, cinema e realidade (Pedro Amorim).


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NOTE

[1] Assy/Chueiri (2020); Macedo Duarte/Assis César (2020); Bentes (2019).

[2] Macedo Duarte/Assis César (2020).

[3] Sobre a tropicália e o tropicalismo ver Sussekind (2007), pp. 31-58; Veloso (1997); Soares (2019).

[4] Assy/Chueiri (2020), p. 84.

[5] Câmara Cascudo (2013), p. 123.

[6] Benjamin (2013).

[7] Como nos lembra Victor Jara através uma de suas canções mais conhecidas, El Derecho de Vivir em Paz, em referência às violências norte-americanas perpetradas du­rante a guerra do Vietnã.

[8] O cangaço foi uma expressão do banditismo social no sertão nordestino durante o fim do século XIX e início do século XX. Os cangaceiros, liderados por Virgulino, o Lampião, atuaram em cidades dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Os cangaceiros lutavam contra latifundiários, coronéis e contra o Estado, buscando a superação das injustiças sociais e da situação de precariedade no nordeste do Brasil, perseguindo a justiça de forma paradoxalmente violenta. Em julho de 1938, Lampião, sua companheira Maria Bonita e outros cangaceiros foram alcançados pela polícia e decapitados, alguns deles ainda com vida. Suas cabeças foram exibidas como troféus em praça pública e enviadas posteriormente para o museu Nina Rodrigues, em Salvador, Bahia, onde ficaram expostas durante muito tempo.

[9] da Cunha (2016).

[10] Rosa (1980).

[11] A descrição que Euclides da Cunha faz de Antônio Conselheiro parece-nos car­regada de preconceitos contra o povo de Canudos e seu líder. Roberto Ventura (1997) lembra que o autor de Os Sertões se baseou em relatos orais, poemas e profecias encon­tradas nos escombros de Canudos para criar um perfil da comunidade e de Conselheiro, um líder louco e sebastianista que influenciava um grupo caótico de iletrados e faná­ticos. Essa imagem, carregada de um viés racista, ignorava o teor dos sermões escritos por Conselheiro, aos quais Euclides da Cunha não teve acesso integral. Os sermões mostravam um homem articulado e capaz de comunicar ideais políticos e religiosos aos seus seguidores. Da mesma forma o Arraial de Canudos parece ter se sustentado bem mais por conta do coletivismo, do senso de pertencimento à comunidade – que chegou a ser a segunda “cidade” mais populosa da Bahia – e da fé comum entre sertanejos te­mentes a Deus. O fanatismo pode ter se manifestado com mais intensidade nos últimos dias do arraial, uma vez que a fuga da região deixou apenas aqueles homens e mulheres que não tinham a opção de sair de Canudos ou pretendiam morrer pelo arraial e por Conselheiro. O messianismo de Canudos pode ser pensado hoje como uma tentativa de redenção coletiva a partir da crença em deus e na tentativa de construir um “paraíso” terreno a partir da forte identificação comunitária e das formas de trabalho que não pe­nalizassem o sertanejo em favor dos coronéis.

[12] Assy/Chueiri (2020), p. 97.

[13] Bentes (2019).

[14] Marinetti (1909), p. 12.

[15] Assy/Chueiri (2020), p. 12.

[16] Marx/Engels (2010) p. 44.

[17] Virilio (1999).

[18] Assy/Chueiri (2020), p. 12.

[19] Neuenschwander-Magalhães (2020a).

[20] Foucault (2010), p. 201.

[21] Foucault (2010), p. 211.

[22] Mbembe (2016), p. 146.

[23] Benjamin (2013).

[24] Martel (2011).

[25] Butler/Gambetti/Sabsay (2016), p. 26.

[26] Douzinas (2013).

[27] Gagnebin (2018).

[28] Dorlin (2021).

[29] Hobbes (2003).

[30] A injustiça aqui e agora, a violência imanente, demanda a reação também imedia­ta, o contra-ataque, a rápida organização popular. Essa organização é em si uma forma de tensionamento da soberania do Estado imaginado por Dornelles e Mendonça Filho, da qual participam agentes nacionais e internacionais.

[31] Dorlin (2021), p. 155.

[32] Derrida (2018).

[33] Derrida (2018), p. 21.

[34] Avelar (2009).

[35] Luhmann/De Giorgi (1993).

[36] Douzinas (2013).

[37] Neuenschwander-Magalhães (2020b).

[38] Luhmann (1988).

[39] Douzinas (2013).

[40] Podemos ver referências a caixões de madeira nos filmes de Django dirigidos por Corbucci e na trilogia do Homem sem Nome, de Sérgio Leone, por exemplo. Caixões de madeira são os arautos do massacre, e em Bacurau servem a esse papel sem que saiba­mos ainda que corpos os ocuparão.

[41] Perfeitamente alinhado à ideia do pássaro/vila que caça e consome o estrangeiro, o poster especial de Bacurau desenhado por Carla Moreira em 2018 mostra a ave Bacurau em pleno voo e na iminência de alcançar, com sua boca, um inseto solitário.

[42] O movimento antropofágico foi um conjunto de experiências culturais e artísticas inaugurado com o modernismo brasileiro. Seu marco temporal é a publicação do Manifesto Antropófago por Oswald de Andrade em 1928. Sua razão de ser era a transformação das influências externas, internacionais, em energia criativa interna, operando uma renovação estética da arte brasileira. Assim, formava-se a metáfora da antropofagia: o consumo, a transformação e o novo uso das influências externas como uma operação orgânica, corpórea. A Tropicália revisita o tropicalismo ao ressignificar as influências internacionais das décadas de 50, 60 e 70, posicionando o resultado dessas ações antropofágicas no campo artístico brasileiro. Nesse sentido, ver Veloso (2008), p. 242: «O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da devoração. Nós, brasileiros, não de­veríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, “assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar, por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação».