LawArtISSN 2724-654X
G. Giappichelli Editore

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O lugar da literatura na educação jurídica: três urgências contemporâneas (di Cristiano Paixão, Universidade de Brasília)


O artigo discute o lugar da literatura no ensino do direito. São apresentadas três propostas ligadas à inserção de textos literários nos currículos de cursos jurídicos. A primeira ressalta a importância de considerar obras da literatura como parte integrante do corpus textual na base da formação do jurista. Parte-se do pressuposto de que as obras literárias devem compartilhar o mesmo espaço dedicado aos livros de doutrina, como os tratados e manuais. Na segunda proposta requer-se que a escritura e a leitura de textos jurídicos envolvam as dimensões do prazer e da fruição, tal como estabelecidas na obra de Roland Barthes. A terceira procura restabelecer a centralidade da literatura contemporânea no ensino do direito. Nesta parte do artigo, são apresentadas sugestões de obras literárias aptas a estabelecer uma relação e uma reflexão com temas jurídicos do presente. As considerações finais ressaltam a importância da literatura – e de sua constante renovação – para o estudo do direito.

DOI: 10.17473/LAWART-2020-1-9

The Place of Literature in Legal Education: Three Contemporary Necessities

The paper discusses the role of literature in legal education. It presents three proposals linked to the insertion of literary texts in the curricula of legal courses. The first emphasizes the importance of considering works of literature as an integral part of the textual corpus that underlies the jurist’s training. The assumption is made that literary works should share the same space dedicated to books of doctrine, such as treaties and manuals. In the second proposal there is the requirement that the writing and reading of juridical texts involve the dimensions of pleasure and fruition as established in the work of Roland Barthes. The third seeks to re-establish the centrality of contemporary literature in the field of legal education. In this section, there are suggestions for literary works that can establish a relationship and a reflection on current legal themes. The concluding remarks highlight the importance of literature – and its constant renewal – for legal education.

- 1. Urgência 1: Literatura como componente curricular - 2. Urgência 2: Leitura, escritura e o prazer do texto - 3. Urgência 3: Literatura como índice do contemporâneo (também no direito) - 3.1. Tema 1: Experiências autoritárias, transições políticas, memória, trauma - 3.2. Tema 2: Direitos fundamentais e constitucionalismo: diversidade e reconhecimento - 3.3. Tema 3: Processos criminais, responsabilização individual, conflitos, instituições - 4. Conclusão: o lugar da literatura nos cursos jurídicos - Referências bibliográficas - NOTE


Pensar o lugar da literatura no direito. Essa tarefa pode envolver muitos âmbitos profissionais, muitas formas de leitura, muitos interlocutores em um diálogo potencialmente infinito [1]. A vasta produção acadêmica no campo do direito e da literatura é um testemunho da força dessa associação [2]. Nossa reflexão assumirá uma dimensão mais específica: trata-se de pensar o lugar da literatura – como atividade de produção de texto, como prática de leitura – na educação jurídica.

Essa tarefa será ilustrada por três urgências.


1. Urgência 1: Literatura como componente curricular

Como relembrado por José Geraldo de Sousa Junior em importante produção acerca do ensino do direito no Brasil, os cursos jurídicos são marcados por uma espécie de “ontologia furtiva”. A imagem, que vem da obra de Roberto Lyra Filho, evoca a ideia de que existem camadas subterrâneas no currículo das faculdades de direito; essas camadas, essas condensações de sentido, muitas vezes são pressupostas, dadas, não discutidas. É fundamental, para Sousa Junior, compreender o papel dessas estruturas, pois «o conhecimento do Direito opera, exatamente, na consciência das interações que toda atividade intelectual e prática constitui historicamente, articulando condições sociais e teóricas» [3].

A noção de “ontologia furtiva” remete à categoria do “currículo oculto”, tornada conhecida por algumas obras de Michael Apple [4]. E ela ilumina um aspecto importante: os conceitos e institutos do direito são informados por concepções de mundo e interpretações dos fenômenos sociais. Não se imagina, aliás, que poderia ser diferente. O direito, por definição, é um saber que dialoga e interage com muitas áreas das humanidades. Seria impossível – e mesmo contraditório – exigir algum tipo de “pureza metodológica” em suas estruturas conceituais.

Sabemos que os processos de formação construídos no âmbito das instituições de ensino estão inseridos em um contexto mais abrangente, que envolve teorias de base, técnicas de pesquisa e mecanismos de reprodução de investigações. No célebre debate ocorrido em Londres por ocasião de um congresso de filosofia da ciência, Thomas Kuhn deixou bem claro a seus arguidores – entre eles alguns importantes seguidores da obra de Karl Popper – que existiam mais semelhanças entre as concepções de Kuhn e Popper do que os próprios popperianos estavam dispostos a assumir. Isso porque as condições de verificabilidade de uma teoria, na perspectiva popperiana, envolvem um reconhecimento público acerca da validade da própria teoria, algo que pode ser interpretado como muito próximo da noção de comunidade científica que está no centro das reflexões trazidas na obra revolucionária de Kuhn. Ainda que esse debate seja fascinante, assim como seus desdobramentos, ele não é o foco de nossa atenção aqui [5].

Nosso objetivo foi apenas o de ressaltar o fato de que o currículo de um curso, especialmente no campo das humanidades, está impregnado de pressupostos, concepções de mundo, ideias sobre a sociedade. Tudo isso sob a forma textual. Nossa proposta é a de pensar o lugar da literatura, do texto literário, nesse emaranhado de textos que caracteriza o processo institucional de formação do jurista. Mas não pretendemos desencadear nenhum tipo de operação de “purificação” do currículo ou de “desvelamento” de segredos bem guardados nos manuais de direito.

O que se postula é algo bem mais simples. A ideia é trazer, na verdade, uma maior quantidade de material literário ao universo textual do direito. Em resumo, trata-se de densificar e tornar mais complexo o repertório de leitura dos futuros juristas.

É a questão, portanto, de repensar a educação jurídica. E a tradição literária, os cânones de leitura compartilhados por países, regiões, continentes e comunidades, devem ser “parte integrante” dessa educação jurídica. Aqui há algo a ser evitado: a ideia de que os “verdadeiros” livros jurídicos são os manuais e tratados referentes a disciplinas internas à ciência jurídica e a conclusão que costuma acompanhar essa ideia, ou seja, a de que obras literárias são de “interesse geral”, e podem ser “complementares” na formação do jurista.

Não se deve negar, evidentemente, o fato de que o direito é um saber especializado e complexo. Na sociedade moderna funcionalmente diferenciada, há a necessidade de que a comunicação se fragmente e se especialize. Não há um omni-sistema dominante. Não há uma comunicação prevalente. Não há um sistema-guia.

Sempre existirão livros especializados em determinados campos do direito. Isso decorre da própria estrutura da sociedade moderna, e da necessidade, que é historicamente cumprida pelas universidades, de treinar profissionais em campos da experiência humana. Se isso é válido para a medicina, para a engenharia, para a expressiva maioria dos cursos universitários, por que não seria válido para o direito? Manuais e tratados, ademais, são parte integrante – e vital – do conjunto de teorias, técnicas e ferramentas de aprendizagem que está na base de uma estrutura sistêmica de conhecimento, nos moldes daquilo que se convencionou chamar paradigma, a partir da obra de Thomas Kuhn [6].

O problema a ser combatido reside em outra concepção: a de que os estudantes encontrarão apenas nos manuais jurídicos o conhecimento necessário para a compreensão e aplicação do direito. E aqui já é possível entrever o lugar da literatura.

Na proposta aqui esboçada, os textos literários não são concebidos como auxiliares, complementares ou acessórios no processo de construção dos cursos jurídicos. Eles são vistos como integrantes do corpus textual que constitui a base da educação jurídica. O direito é, sempre, uma experiência social, que pressupõe a existência de uma comunidade que se liga por relações mediadas por várias normas. Entre esses conjuntos normativos está o direito.

Cabe aqui uma pequena digressão sobre a relação entre literatura e educação.

Textos literários não são necessariamente úteis como ferramentas de ensino. A literatura é o lugar da construção textual com finalidade artística, ou seja, tramas literárias não são, a princípio, instrumentos didáticos. Não “ensinam” diretamente. Nossa relação com os textos é permeada por muitas mediações – textuais, culturais, contextuais, existenciais. A literatura é, antes de tudo, problematizante. Contextos sociais e históricos são vistos em outra perspectiva, e lançam um horizonte de indagações sobre a sociedade, o sujeito e o outro.

Como justificar, então, o papel da literatura no cânone dos textos jurídicos? Por que razão os estudantes do direito, que serão treinados para compreender e aplicar ordenamentos normativos, precisam manter contato com textos literários?

A resposta já está dada. Apenas esse elemento problematizante da literatura pode oferecer densidade à educação jurídica. Livros de cunho profissionalizante são destinados, em geral, à redução de complexidade: eles precisam conter escolhas claras, apresentar pontos de vista que normalmente são excludentes e oferecer respostas seguras aos problemas do direito moderno. Eles precisam organizar o material jurídico de forma transparente. Essa é a importante função de um manual.

Mas aí está também sua principal limitação. A literatura livre de pretensões profissionalizantes corre em outra direção. Ela gera complexidade. E nesse sentido, como afirmado por Antoine Compagnon, a literatura encerra em si própria «um saber insubstituível, circun­stan­cia­do e não resumível sobre a natureza humana, um saber de singularidades» [7].

Apenas uma associação entre esses dois tipos diferentes de narração literária – a ficcional, autônoma, construída em forma de um discurso polifônico e a profissionalizante, voltada a um fim específico, de matriz pedagógica – pode propiciar ao estudante de um curso jurídico uma formação apropriada.

E como isso se traduz na concepção de um currículo para o curso de direito?

A partir da inserção de obras literárias nas disciplinas do eixo profissionalizante do curso. É importante frisar que na experiência brasileira contemporânea é bastante perceptível o aumento do interesse e das pesquisas em torno da relação entre direito e literatura. Vários livros importantes foram publicados sobre o tema, em suas inúmeras dimensões, e houve um decisivo passo rumo à institucionalização do campo com a criação da Rede Brasileira de Direito e Literatura – RDL, em 2014. A Rede é um coletivo formado por pesquisadores da área, e já conta com uma história importante de encontros, seminários e publicações. O congresso anual da área, o CIDIL – Colóquio Internacional de Direito e Literatura, já teve nove edições. Além disso, a RDL é responsável pela publicação da revista AnamorphosisRevista Internacional de Direito e Literatura, que está em seu sexto número e conta com contribuições de vários autores, com todos os textos apresentados em versão bilíngue.

Isso, naturalmente, se reflete na docência. Pesquisadores envolvidos com seminários promovidos pela RDL são, antes de tudo, professores. E são verdadeiros difusores do campo em suas respectivas atividades nas instituições em lecionam. O mesmo vale, aliás, para a influência de alunos (de graduação e pós-graduação) que igualmente frequentam os eventos da RDL. É evidente, portanto, essa disseminação, nos cursos jurídicos, impulsionada por pesquisadores.

Nossa proposta, contudo, vai além, e defende que as áreas especializadas do curso de direito, nas quais se concentram as disciplinas relacionadas ao exercício das profissões jurídicas – direito civil, penal, constitucional, administrativo, trabalho, tributário, econômico, direito processual e disciplinas afins – também sejam afetadas pelos textos literários.

O que justifica essa proposta?

A necessidade de problematizar o saber voltado ao direito, em todas as suas dimensões. Uma das principais características da sociedade contemporânea é a complexidade – o enorme grau de informação disponível, a crescente preocupação com as consequências das escolhas feitas no presente, a visível dificuldade em prever os desdobramentos dessas mesmas decisões, o surgimento de desafios ligados ao meio ambiente e ao clima, a constelação de temas relacionados à inclusão de setores e sujeitos vulneráveis, enfim, tudo isso implica uma redefinição dos problemas que se colocam ao direito. No cenário contemporâneo, outro desafio se coloca: o cenário de crise em que se encontram várias democracias, com a ascensão ao poder, em alguns países, de lideranças políticas não comprometidas com procedimentos e limites típicos do constitucionalismo moderno [8].

A formação do profissional do direito precisa levar em consideração esses aspectos. Como dito com propriedade por Mario Bretone, o direito pode despertar reflexões de ordem filosófica, mas sua razão de ser é a de interferir na vida concreta, no mundo, nas relações sociais por meio de normas, conceitos, práticas sociais e instituições: «O direito é um agir e um saber orientado praticamente, que se eleva por vezes ao plano da reflexão teorética» [9]. É por essa razão que todo estudante de direito, independentemente de afinidades em relação a uma ou outra disciplina, de propensões a uma dada carreira jurídica, terá de enfrentar temas complexos e desafios inéditos em sua atividade profissional.

E aqui fica claro o papel da literatura. Para cada tema sensível que envolve o saber jurídico, haverá textos literários aptos a problematizar esse mesmo saber. A vastidão da literatura inviabiliza, aqui, a elaboração de um catálogo de referências exemplares. Fiquemos, contudo, com uma pequena relação de temas cruciais para o direito que foram – e são – tratados pela literatura de modo recorrente: vínculos familiares, relações intersubjetivas, aspiração pela liberdade (algumas vezes contraposta a estratégias violentas de submissão ou escravização), regimes disciplinares, sofrimento mental, livre arbítrio, demandas por reconhecimento, lutas por igualdade, relação do indivíduo com instituições políticas e jurídicas, entre vários outros.

Nesse sentido, ainda que os temas sejam recorrentes, eles são constantemente renovados, reescritos, problematizados. E a literatura é um dos discursos aptos a fornecer meios para que juristas possam encontrar soluções criativas, inovadoras e atentas à perspectiva social do direito. É nesse sentido que Antoine Compagnon fala de uma “ética da leitura”:

o crítico Harold Bloom e o escritor Milan Kundera não têm mais escrúpulos para reatar com uma ética da leitura: “A resposta final à pergunta – ‘por que ler?’ –, escreve Bloom, é que somente a leitura intensa, constante é capaz de construir e desenvolver um eu autônomo”. Em favor da leitura cria-se uma personalidade independente capaz de ir em direção ao outro. Paul Ricoeur não sugeria outra coisa quando colocava que a identidade narrativa – aptidão em colocar em forma de narrativa de maneira concordante os acontecimentos heterogêneos de sua existência – era indispensável à constituição de uma ética [10].

É hora de enfrentar outro desafio próprio da intersecção direito-literatura.


2. Urgência 2: Leitura, escritura e o prazer do texto

Em mais uma de suas provocações literárias, Jorge Luis Borges mostra, ao mesmo tempo, sua admiração e sua diferença em relação a James Joyce. Borges dizia admirar muito o escritor irlandês e reconhecia nele um grande talento. Mas, prosseguia, havia um problema: Joyce teria fracassado como escritor, «já que sua obra requer esforço para ser lida» [11]. Não há prazer em ler uma passagem de Joyce, diz Borges. Devemos receber essa provocação como uma homenagem. Borges vislumbrou a revolução joyceana na literatura, a ponto de dedicar dois poemas, ambos da década de 1960, ao escritor de Ulisses. São poemas apologéticos, que celebram o texto de Joyce. Um deles se intitula Invocação a James Joyce e o outro leva o nome do autor irlandês.

Mas a questão suscitada inicialmente por Borges permanece. Qual é o lugar do prazer no texto literário?

Essa é uma pergunta importante para a reflexão aqui proposta, que envolve o papel da literatura nos currículos do curso de direito. É possível haurir prazer da leitura de um texto jurídico?

Uma característica muito marcante da maior parte dos livros técnicos do direito – não devemos aqui generalizar, há manuais e tratados que se destacam pelas virtudes do discurso narrativo – é uma espécie de contradição inicial: são textos que não assumem sua vocação de texto. Por muitas vezes buscarem uma objetividade extrema, acabam por atingir uma dimensão fixa, granítica e controlada em seu discurso, e dessa forma procuram proteger-se de si próprios, ou seja, aspiram anular-se como texto.

Costas Douzinas e Lynda Neal apresentam uma explicação convincente para esse fenômeno. Eles fazem referência à divisão triádica kantiana relacionada à crítica do conhecimento, dos valores e do juízo estético. Observam que essa divisão já é um reflexo das transformações trazidas com a modernidade, que acabou sendo recepcionada, pelos autores e cultores de textos jurídicos, como portadora de uma separação radical entre o discurso jurídico, de cunho científico, e o discurso literário, associado às artes. O resultado, para Douzinas e Neal, é que «na modernidade o direito se transformou em uma literatura que reprime sua dimensão literária e em uma prática estética que nega sua própria arte» [12].

Mas as coisas não precisam ser assim. Se na primeira urgência aqui retratada sugerimos a inserção de obras literárias no repertório dos cursos jurídicos, incluindo as disciplinas do eixo profissionalizante, agora é o momento de tratar de outro tipo de texto, o livro científico, o manual, o tratado. A dimensão estética não está ausente do texto técnico. Roberto Armando Ramos de Aguiar nos diz que a escrita profissional, em cujo treinamento o jurista deve se inserir, «há de primar pela coerência, pelo movimento lógico do texto e pelos matizes cambiantes da expressão, que passam da demonstração para o convencimento e deste para a emoção estética» [13].

O texto jurídico pode, então, ser lido sob outra perspectiva, a partir da expressão tornada célebre por Roland Barthes, com prazer ou com fruição:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência dos seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem [14].

Ambas as percepções descritas por Barthes nessa inspirada passagem trazem novas possibilidades às leituras que serão empreendidas pelos estudantes de direito. Expressões como “euforia”, “texto que desconforta”, “crise na relação com a linguagem” não costumam frequentar as práticas cognitivas do curso jurídico. Mas elas existem como potencialidades em qualquer texto, a depender, sempre, da perspectiva do leitor: suas experiências pretéritas de leitura, seu horizonte de possibilidades, suas demandas para o tempo presente.

Essa ideia de um texto que se permite fruir, desfrutar, desdobrar tem conotações importantes para o direito. Ler é também desvelar. E uma das dimensões do texto jurídico que se apresenta encriptada, purificada, liofilizada, é a presença de um discurso de poder, que é inerente ao uso da linguagem. Para Barthes: «ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional, não constitui uma atividade que seja, por direito, pura de qualquer poder: o poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder» [15].

Recuperar, portanto, esse lugar do poder no texto jurídico não significa apenas desvelar; importa também qualificar esse discurso, compreender suas implicações, perceber as preferências e exclusões de sujeitos, temas, linguagens. Essa busca é também parte do prazer do texto:

Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro [16].

Essa urgência se encerra, então, com esse chamado a uma outra prática discursiva, que descortine o prazer do texto – que pode marcar a leitura de textos jurídicos, assim como a escritura de novos textos. Se, como dito por Douzinas e Nead, o discurso jurídico reprimiu sua própria dimensão literária, deixando de se definir mesmo como texto, cabe ao leitor contemporâneo modificar esse estado de coisas. E aí está uma tarefa importante para o campo do direito e da literatura: compreender como foi possível essa ocultação, essa negação do texto como texto. Isso tem consequências importantes:

O direito opera por meio da criação e projeção de mundos ordenados; assim, a atenção ao estilo, detalhe e forma auxiliará a compreensão de percepções ocultas do direito e permitirá o desenvolvimento de mundos e visões alternativas que adquirem sua legitimidade a partir de textos, histórias e tradições reprimidas. Nesse sentido, tratar o direito como literatura faz com que sejam expostas e enfatizadas as formas de vida e as dimensões espirituais que as instituições constroem e tentam capturar [17].

Essa reflexão nos conduz a uma terceira urgência.


3. Urgência 3: Literatura como índice do contemporâneo (também no direito)

É quase natural que, quando se discute a relação entre direito e literatura, o universo dos livros clássicos venha à tona. Inclusive no registro visual, muitas referências “clássicas” são familiares ao mundo jurídico: indumentária, vocabulário, tradição, livros antigos, veneráveis e conservados em bibliotecas imponentes. Não é surpreendente que clássicos da literatura sejam também associados ao direito. Há vários e interessantes livros e artigos sobre o lugar do direito na obra de Shakespeare, Cervantes, Machado de Assis e tantos outros [18].

Nosso escopo nessa etapa das urgências é outro, contudo. Ele envolve, antes de tudo, resgatar a reflexão e a leitura da literatura contemporânea nos cursos jurídicos.

Direito e complexidade são palavras que possuem uma associação imediata nos tempos atuais. As diversas demandas colocadas por uma sociedade plural, marcada pela aceleração do tempo social e conflituosa geram um gradiente de pressão aos ordenamentos jurídicos em todos os âmbitos (nacional, local, comunitário, internacional). Quanto maior a necessidade de tomar decisões, maiores os riscos envolvidos e mais imprevisíveis as consequências dessas mesmas decisões [19]. E é evidente que os cursos jurídicos precisam enfatizar esse elemento contemporâneo.

Para tanto, é fundamental que a inserção de textos literários na estrutura curricular, postulada em nossa primeira urgência, não renuncie à literatura contemporânea, caracterizada por todas as ambiguidades, dificuldades e complexidades do tempo presente.

Muitos autores vêm demarcando, com obras fascinantes, uma característica da época contemporânea: a densidade do presente. François Hartog [20], Giacomo Marramao [21], Giorgio Agamben [22], Hans Ulrich Gumbrecht [23], entre muitos outros, vêm ressaltando a transformação na percepção do contemporâneo pelo contemporâneo, ou seja, o componente de invisibilidade, de opacidade que marca a experiência do nosso próprio tempo. Para utilizar a linguagem estabelecida na obra já clássica de François Hartog, a exaustão do regime moderno de historicidade redefiniu as manifestações do passado, presente e futuro, tal como percebidas no contemporâneo.

Parecem adequadas as reflexões de Hans Ulrich Gumbrecht, que percebe uma dimensão de espessura, de concentração na experiência presente. Segundo o autor, vivemos «em um tempo, em um presente que não consegue deixar nada “para trás”, estamos não apenas “disponíveis” de modo instantâneo e imediato (via comunicação eletrônica) para pessoas em todo o planeta, como somos também potencialmente “contemporâneos” de mais coisas do que no passado» [24].

Essa transformação na experiência do tempo envolve a construção de um novo cronótopo; e são então redefinidas as relações entre presente e passado e também entre presente e futuro. Há uma modificação sensível quanto à percepção das potencialidades do futuro, especialmente em comparação com o cronótopo moderno, que Gumbrecht define como “historicista”. Para o autor:

Do lado do futuro, o cronótopo historicista (basta pensar na ideologia do ‘progresso’, no marxismo e no capitalismo) via um horizonte totalmente aberto de possibilidades, entre as quais o sujeito humano (e sua ação) poderia simplesmente selecionar e escolher. Entre esse passado e esse futuro, o presente do cronótopo historicista se reduzia a um ‘momento de transição imperceptível’, no qual o sujeito, usando a experiência do passado como orientação, deveria fazer escolhas entre as possibilidades oferecidas pelo futuro.
(...)
Ao mesmo tempo, com o ‘aquecimento global’ (apenas como exemplo), nosso futuro não se apresenta mais como um ‘horizonte aberto de possibilidades entre as quais podemos escolher’. Nosso novo futuro, pelo contrário, carrega ameaças de explosões demográficas (com suas consequências), de implosões econômicas, de uma nova escala de catástrofes naturais, além de muitos outros cenários desoladores [25].

É quase óbvio concluir que esse estado de coisas terá um impacto profundo na literatura. Mas é necessário afastar qualquer suposição referente à existência de uma relação direta e causal entre literatura e história, narrativa literária e discurso histórico. A literatura é uma plêiade de gêneros e experimentações que fabrica suas próprias influências, constrói e desconstrói escolas e correntes, enfim, um campo da experiência humana que é caracterizado pela sua autonomia. Ela não é – e nunca foi – um espelho da realidade concreta dos sujeitos e da vida social. A literatura não explica o mundo; ela não nos torna pessoas melhores. A literatura nos dá oportunidades, fornece material para o estar-no-mundo.

Algum diálogo, contudo, existirá. Escritores contemporâneos serão marcados por esse índice do presente denso, opaco, omnipresente. Como assinalado por Johan Faerber, «a marca da literatura que se inventa a partir do final da década de 1990, até o final dos anos 2010, é uma consciência do tempo inédita, sem precedentes» [26]. E essa consciência, desdobrada e reelaborada sob a forma de um discurso literário, poderá ocupar um lugar importante na formação do jurista. Refletindo sobre as tendências da literatura contemporânea, Karl Erik Schøllhammer retoma a discussão em torno das transformações no regime de historicidade contemporâneo. E essas mudanças significam também um desafio ao ofício do escritor:

Um dos efeitos dessa situação é a sensação de certo vácuo histórico, em termos políticos e estéticos, para o escritor brasileiro. Perdeu-se a noção de resistência a um regime autoritário, que orientava parte significativa da produção das décadas de 1970 e 1980. Perdeu-se o entusiasmo possível da democratização dos anos 1990, alimentado pela queda do muro de Berlim. Perdeu-se até mesmo o rumo geopolítico que norteou a arte e a literatura em diálogo com os estudos culturais e pós-coloniais do final do século passado. Obviamente, não faltam causas políticas e sociais no Brasil atual, mas é necessário entender de que maneira as artes, em geral, e a literatura, em particular, poderão recuperar relevância dentro desse contexto [27].

Não é coincidência, então, que a literatura contemporânea seja um discurso muitas vezes marcado pela ambiguidade, pluralidade e se apresente como fronteiriça, especialmente a partir da indefinição de gêneros. A separação entre ficção e não ficção se torna mais problemática, menos óbvia, e aparece como elemento crucial na literatura que se coloca no mundo literário do final do século XX, para usarmos as balizas temporais aludidas por Johan Faerber e Karl Erik Schøllhammer.

É necessário, de toda forma, quebrar uma ideia de diferenciação radical entre ficção e não ficção. A literatura contemporânea, em vários registros e intensidades, está aberta à diluição dessa barreira. Não há, portanto, certezas narrativas associadas à identidade de gêneros – o que, aliás, é algo bastante produtivo na literatura do nosso tempo, como teremos oportunidade de perceber pela indicação de algumas obras ao final desta urgência.

Outro índice importante do discurso literário contemporâneo é a marca da catástrofe. A chamada literatura do testemunho surge a partir da experiência marcante da Shoah, de sua singularidade, de sua incompreensibilidade. Autores como Primo Levi, Paul Celan, Elie Wiesel, Tadeusz Borowski, Jean Améry e tantos outros trazem à tona essa cesura, esse corte na representação, essa impossibilidade de narrar que é acompanhada, paradoxalmente, por um impulso de contar o que foi testemunhado, um dever de memória [28].

A crítica literária, a história contemporânea e a filosofia política vêm ressaltando, com insistência, a singularidade, o caráter único da Shoah. A eliminação, perpetrada de forma sistemática e organizada pelo regime nazista, de judeus, negros, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e outras “classes” de pessoas é sempre retratada como um evento singular. Muitas vezes nos deparamos com questões metodológicas, historiográficas e éticas: é possível compreender a Shoah a partir de eventuais semelhanças com outras experiências totalitárias (fascismo, stalinismo)? Podemos utilizar esse evento como elemento, ao menos comparativo, para compreender as violações maciças de direitos humanos ocorridas após a Segunda Guerra Mundial? Quando investigamos, sob a perspectiva política ou histórica, as situações de tortura, execuções sumárias e desaparecimentos ocorridos nas ditaduras latino-americanas a partir da década de 1950, é lícito rememorar o trauma do Holocausto? Quando verificamos os efeitos da “guerra contra o terror” promovida pelos Estados Unidos da América e seus aliados, com a prática preconcebida da tortura e sua crescente “legitimação”, podemos estabelecer um paralelo com o III Reich?

São questões que permanecem abertas, e que nos acompanharão sempre que nos ocuparmos do século das catástrofes e das aporias e dificuldades ligadas à representação e à narrativa. O fato é que a experiência da destruição, da aniquilação, da perda das referências narrativas perpassa a literatura do pós-guerra. Como dito, com perspicácia, por Karl Erik Schøllhammer, na experiência contemporânea o «tempo não se dirige mais em direção ao futuro ou a um fim a ser realizado pelo progresso ou pela emancipação subjetiva; agora o tempo volta-se em direção à catástrofe que interrompeu o passado» [29].

Um exemplo é particularmente marcante: a literatura que se produz, nas circunstâncias mais improváveis, no campo de prisioneiros de Guantánamo. Como se sabe, após os atentados de 11 de setembro de 2001 houve uma reação militar liderada pelos Estados Unidos contra o governo talibã no Afeganistão. Naquela campanha, foram feitos prisioneiros, que foram transportados para a base naval de Guantánamo, que fica em território cubano mas cujo controle pertence aos Estados Unidos. Trata-se de uma operação ilegal à luz dos princípios do direito internacional dos conflitos armados, pois os detentos de Guantánamo – oriundos não apenas do cenário de guerra no Afeganistão, mas também de outros locais em que se desenvolve a “guerra contra o terror” – não têm o status de prisioneiros de guerra reconhecido por seus captores. O campo, que já teve mais de 600 prisioneiros, conta hoje com cerca de quarenta detentos. São inúmeros os casos de tortura e as tentativas de suicídio entre os prisioneiros [30].

Foi publicado, em 2007, um livro com 22 poemas elaborados por 17 prisioneiros do campo. O processo de construção dos poemas foi sinuoso: os primeiros versos foram escritos no verso de copos de papelão recolhidos no refeitório do campo de prisioneiros, com o uso de pedras, gravetos ou tubos de pasta de dente (considerando que vários detentos não tinham acesso a papel ou caneta). Alguns advogados que representam os interesses de prisioneiros da ilha conseguiram, após longo processo burocrático, autorização das Forças Armadas para a veiculação dos poemas. A maior parte das poesias foi retida e possivelmente destruída. A tradução dos poemas autorizados – redigidos originariamente em árabe ou pachto – foi inteiramente controlada pelo Pentágono. Nem os detentos-autores nem o organizador da publicação, o advogado Mark Falkoff, puderam opinar em relação às traduções.

Mesmo com todos esses percalços, o resultado da coletânea é prodigioso. As poesias são simples e diretas. Porém, mais do que o seu teor, é a história de cada um dos poetas que se revela representativa do quadro que aqui se pretende reconstruir. Um dos autores, Jumah al Dossari, nacional do Bahrein, tem uma trajetória que ilustra a situação de muitos detentos de Guantánamo. Consoante a nota biográfica que consta do livro de poesias, Dossari permaneceu em regime de confinamento numa solitária entre 2003 e 2007 e tentou o suicídio em doze oportunidades diferentes: «Numa ocasião, ele foi encontrado por seu advogado, suspenso pelo pescoço e sangrando por uma ferida em seu braço» [31].

A resposta de Dossari – e de mais dezesseis cativos – é a produção de uma narrativa repleta de significado para a construção de uma memória da opressão. O teor das poesias dos detentos, com sua linguagem contundente e visceral, apresenta-se como um microcosmo da irracionalidade do campo de prisioneiros [32].

A relação entre esse contexto extremo e a capacidade de produzir discurso poético é explicitada no texto de Ariel Dorfman, escrito como posfácio à coletânea de poemas:

Trinta anos atrás, quando eu vivia no exílio e o meu país, o Chile, estava sendo devastado por uma ditadura, eu conheci uma mulher que havia sido presa por agentes da polícia secreta de Pinochet e depois torturada incessantemente num cárcere em Santiago. Ela me disse naquele dia, em Paris, que foi a poesia que a fez sobreviver. Na espessa escuridão de seu tormento, ela repetia para si mesma versos de algum poeta morto, como forma de se diferenciar daqueles homens que estavam tratando o seu corpo como um objeto, um pedaço de carne. Foi assim que ela protegeu sua identidade que estava sendo invadida, ou seja, a única coisa que aqueles carcereiros não poderiam tocar, não poderiam negar a ela, não poderiam apagar: algumas palavras, apenas algumas palavras precárias, quase evanescentes, que vinham do passado na forma de uma defesa contra aquilo que parecia uma eternidade de dor e humilhação [33].

A experiência de Guantánamo apresenta muitos desafios ao campo do direito. A sistemática violação de direitos humanos, a generalização da tortura, a ausência de um órgão judicial independente apto a conferir um julgamento justo, a ilegalidade do campo em si, tudo isso revela uma prática que se colocou como excepcional, mas que persiste até a atualidade, e que remonta a outras práticas autoritárias da segunda metade do século XX, como percebido por Ariel Dorfman. Não é necessário sublinhar o impacto que a literatura produzida em tais circunstâncias, num contexto histórico tão presente, pode ter na formação de futuros juristas.

Ao longo do presente texto, procuramos ressaltar a urgência da inclusão, nos cursos jurídicos, de textos literários. Parece oportuno encerrar essa terceira parte da narrativa com a indicação de algumas obras. Trata-se de uma antologia pessoal, de um pequeno inventário de experiências de leitura que tem como objetivo único abrir possibilidades de apreensão de aspectos do mundo do direito a partir da literatura.

As obras foram divididas em três grupos temáticos. Procuramos observar, na escolha e na organização dessa pequena lista, um elemento central para o presente artigo: a dimensão contemporânea. Os livros selecionados foram publicados num período que se estende por quarenta e oito anos (entre 1971 e 2019), revelam diversas facetas da produção literária e contemplam, por diversas perspectivas, algo da experiência dos tempos presentes que marcaram sua criação e disseminação. Todas as obras estão disponíveis em português, e serão apresentadas nesse idioma. Em regra, será indicada a edição consultada, com a inserção, entre colchetes, da data da publicação da primeira edição.


3.1. Tema 1: Experiências autoritárias, transições políticas, memória, trauma

As obras selecionadas neste universo temático dialogam com as transformações políticas, sociais e culturais que marcam a experiência contemporânea. Os desdobramentos da Shoah (obras de Sebald, Schlink), os regimes autoritários que marcaram a segunda metade do século XX (Carrère, Barnes), os regimes ditatoriais e as manifestações de autoritarismo político na América Latina (Verissimo, Bolaño), os dilemas trazidos pelos processos de transição política e as formas de manifestação dos traumas decorrentes das violações a direitos humanos (Kucinski, Hatoum), tudo isso compõe o pano de fundo das obras literárias aqui reunidas.

Verissimo, Erico (1978), Incidente em Antares [1971], Porto Alegre, Globo

Schlink, Bernhard (2009), O leitor [1995], trad. Pedro Süssekind, Rio de Janeiro, Record

Bolaño, Roberto (2008), Amuleto [1999], trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Companhia das Letras

Sebald, WG (2008), Austerlitz [2001], trad. José Marcos Macedo, São Paulo, Companhia das Letras

Kucinski, Bernardo (2014), K. – relato de uma busca [2011], São Paulo, Cosac Naify

Carrère, Emmanuel (2013), Limonov [2011], trad. André Telles, Rio de Janeiro, Alfaguara/Objetiva

Barnes, Julian (2017), O ruído do tempo [2016], trad. Léa Viveiros de Castro, Rio de Janeiro, Rocco

Hatoum, Milton (2017, 2019), A noite da espera, Pontos de fuga (coleção O Lugar mais Sombrio, volumes 1 e 2), São Paulo, Companhia das Letras


3.2. Tema 2: Direitos fundamentais e constitucionalismo: diversidade e reconhecimento

Os livros propostos nesta seção propiciam debates em torno de elementos cruciais do constitucionalismo contemporâneo e envolvem dimensões da incompletude dos direitos fundamentais, diante de práticas que envolvem discriminação racial (Nascimento, Coetzee, Coates), dilemas resultantes do reconhecimento da autonomia de populações indígenas (Carvalho), questões ligadas ao gênero e suas configurações ao tempo da construção da narrativa (Lispector) e os desafios para o reconhecimento de minorias linguísticas e direitos de imigrantes (Magris).

Lispector, Clarice (1998), A hora da estrela [1977], Rio de Janeiro, Rocco

Magris, Claudio (2008), Danúbio [1986], trad. Elena Grechi e Jussara F.M. Ribeiro, São Paulo, Companhia das Letras

Coetzee, JM (2013), Desonra [1999], trad. José Rubens Siqueira, São Paulo, Companhia das Letras

Carvalho, Bernardo (2004), Nove noites [2002], São Paulo, Companhia das Letras

Ratts, Alex (2006), Eu sou atlântica – sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, São Paulo, Instituto Kuanza/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (o livro inclui importantes textos de Beatriz Nascimento em poesia e prosa)

Coates, Ta-Nehisi (2015), Entre o mundo e eu, trad. Paulo Geiger, Rio de Janeiro, Objetiva


3.3. Tema 3: Processos criminais, responsabilização individual, conflitos, instituições

Aqui procuramos selecionar livros que permitam um aprofundamento da observação dos complexos processos de responsabilização criminal (Llosa, Sciascia) e da anatomia dos conflitos interpessoais em sociedades em transformação (Saramago, Brito).

Llosa, Mario Vargas (2003), Quem matou Palomino Molero? [1986], trad. Remy Gorga Filho, São Paulo, Arx

Sciascia, Leonardo (1990), Portas abertas [1987], trad. Mario Fondelli, Rio de Janeiro, Rocco

Saramago, José (1995), Ensaio sobre a cegueira, São Paulo, Companhia das Letras

Brito, Ronaldo Correia de (2003), Faca, São Paulo, Cosac & Naify


4. Conclusão: o lugar da literatura nos cursos jurídicos

A postulação que informa este artigo envolve um simples aspecto: incluir a literatura na educação jurídica. As três urgências acima esboçadas são dimensões dessa mesma preocupação. Na nossa experiência contemporânea marcada por um presente denso, opaco e repleto de possibilidades, a complexidade se apresenta como um ponto de partida. E isso se aplica ao mundo do direito, como percebemos por essa inspirada digressão de Roberto Aguiar (que sempre pensou o direito a partir de uma perspectiva multidisciplinar):

Estranho paradoxo vive o direito: de um lado, ele é tratado de modo determinista, linear ou mesmo positivista, a partir de pressupostos que já não mais se sustentam, de outro, ele apresenta uma complexidade, uma riqueza e uma teia de relações caóticas que o faz renascer, qual fênix, rompendo com as paredes que o limitam e com os conceitos que o empobrecem (...) Essa criação é complexa, contraditória, paradoxal e mutável, constituindo-se em expressão linguístico-normativa dos movimentos e poderes das sociedades [34].

Uma das dimensões irrenunciáveis do direito é a alteridade. Direitos pressupõem relações, a capacidade de articulação entre mais de um sujeito, entre perspectivas diversas, entre concepções do que é bom e justo. Como resumido por Roberto Aguiar: «Não há direito sem a capacidade de nos conhecer e conhecer os outros e suas circunstâncias» [35]. E essa relação com o outro, essa consciência da alteridade, é um dos principais registros da vitalidade da literatura.

Para Antoine Compagnon, o discurso literário oferece um meio «de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida» [36]. Essa qualidade projetiva da literatura, que se traduz em uma persistente busca por universalização, significa muito para o direito contemporâneo (e também sobre os desafios que ele deve enfrentar). Afinal de contas, prossegue Compagnon, «o texto literário fala de mim e dos outros; provoca minha compaixão; quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seu destino; suas felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente os meus» [37].

Os desafios colocados pela experiência contemporânea não se limitam, contudo, ao direito como campo da atividade humana e social. A literatura também se vê provocada por outras formas de narrativa, por outras manifestações expressivas que interpelam a tradição e colocam em questão o cânone das referências principais de autoria. Mas a literatura se renova, e assim persiste a construir novas formas do contemporâneo. Pois há algo, diz Leyla Perrone-Moisés, que só ela pode propiciar: «ampliação do imaginário, encontro com o outro e autoconhecimento, capacidade de impressão e expressão, visão crítica do real, emoção estética, felicidade da palavra que nos faltava e nos é dada». É claro que surgirão novos gêneros, novas estruturas normativas, novas e novos autoras e autores. Como dito por Perrone-Moisés, «A literatura ainda tem futuro, a Biblioteca ainda não foi destruída. E nós, leitores e escritores, aqui estamos para ler, eleger e prosseguir» [38].


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NOTE

[1] Meu agradecimento a Ricardo Lourenço Filho, Claudia Paiva Carvalho, Maria Celina Monteiro Gordilho, Ana Paula Manrique e Edson de Sousa, que fizeram excelentes observações a partir de uma versão preliminar do texto. Registro minha gratidão a Massimo Meccarelli e Giovanni Chiodi pelo estímulo indispensável à elaboração deste artigo.

[2] Ver, a título exemplificativo, as contribuições de Ost (2007), Vespaziani (2012), Ruiz/Price/Cárcova (2014), Calvo González (2016), Chueiri (2008), Godoy (2008), Trindade/Gubert/Copetti Neto (2008), Roggero (2015).

[3] Sousa Junior (2002), p. 113.

[4] Apple (1982), pp. 125-157.

[5] Cf. Kuhn (1979), pp. 285-343.

[6] Cf. as principais referências na produção de Kuhn a respeito do tema: (1996), pp. 57-76 e 217-257; (1989), pp. 353-382 e (2006), pp. 115-132.

[7] Compagnon (2009), p. 47.

[8] Ver Paixão/Meccarelli (2020), Grzymala-Busse (2019), pp. 35-47 e Holmes/Krastev (2018), pp. 17-30.

[9] Bretone (1998), p. 11.

[10] Compagnon (2009), p. 49.

[11] Borges (1996), p. 9.

[12] Douzinas/Neal (1999), p. 5.

[13] Aguiar (2004), p. 101.

[14] Barthes (2004), pp. 20-21.

[15] Barthes (2010), p. 10.

[16] Barthes (2004), p. 36.

[17] Douzinas/Neal (1999), p. 10.

[18] Ver, a esse respeito, Jordan/Cunningham (2007), Echevarría (2008), Karam/
Chagas (2019).

[19] Cf. De Giorgi (1998), pp. 185-200.

[20] Hartog (2012), pp. 11-18 e 141-201.

[21] Marramao (2008), pp. 89-107.

[22] Agamben (2010), pp. 55-73.

[23] Gumbrecht (2011), pp. 16-21.

[24] Gumbrecht (2011), p. 19.

[25] Gumbrecht (2011), p. 18.

[26] Faerber (2018), p. 14.

[27] Schøllhammer (2011), pp. 47-48.

[28] Ver Ricoeur (2007), pp. 25-154; Judt (2008), pp. 44-62; Paixão (2012), pp. 113-122; Paixão/Frisso (2016), pp. 191-212.

[29] Schøllhammer (2011), p. 52.

[30] Cf. Paixão (2008), pp. 383-395; Paixão/Benvindo (2020).

[31] Falkoff (2007), p. 31.

[32] Cf. poemas de Al Dossari e Dost (2012), pp. 128-134.

[33] Dorfman (2007), p. 69.

[34] Aguiar (2004), p. 11.

[35] Aguiar (2004), p. 62.

[36] Compagnon (2009), p. 47.

[37] Compagnon (2009), pp. 48-49.

[38] Perrone-Moisés (2003), pp. 214-215.